sábado, 30 de julho de 2022

168 - ATEÍSMO NÃO É FILOSOFIA

 

(Raphaelle Peale -Venus Rising from the Sea - ca. 1822)


Pode-se perguntar: o que colocar no lugar do deísmo? Nada. Não se coloca nada no lugar do deísmo. Quando se deixa de acreditar em deuses, não existe nenhuma outra crença ou filosofia para se colocar no lugar. Porque o ateísmo não é uma filosofia, é apenas um conceito antideus, anticriacionismo. O ateu não é um filósofo, é apenas alguém que não acredita nas bobagens deístas e criacionistas. Nada mais. Por isso, não há pregação pelo ateísmo, não há e não pode haver sociedades ateias ou templos e quaisquer outras besteiras desse tipo. Um ateu não sai por aí a pregar o ateísmo, porque não há o que pregar, o que defender. A crença em deuses é somente uma crença e nada mais. Ou seja: depende daquele ingrediente imponderável, inatingível e indiscutível chamado fé, a criação mais emblemática do deísmo. Acreditar em deus é um ato de fé. O problema é que esse ato de fé se transformou em religião, em filosofias, em metafísicas absurdas e excludentes. Por isso, o crente é um ser absurdo. Combater essa estupidez, sim, é um dever do ateu e de todos os que pensam um pouco além da estupidez humana em sua busca insana por eternidade, por mistérios e por milagres. Mas não há elementos de troca. O ateu não tem nada a oferecer ao crente para substituir sua fé, apenas a liberdade. Liberdade de pensar e buscar a sua própria Weltanschaaung, seu próprio ideário e seu próprio sistema ético.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

167 - VIRTUDES TEOLOGAIS

 

(Dimitar Hinkov - the three graces after Rubens IV)

As três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. A fé se constitui na forma mais acabada de ignorância, do não querer ver o que está diante dos olhos, de não se interessar pela natureza e por suas leis; enfim, a forma mais completa de cegueira intelectual. A fé destrói qualquer possibilidade de raciocínio lógico, e faz de quem a pratica um mero joguete nas mãos dos deístas estúpidos, ao estupidificar o indivíduo e torná-lo escravo de crenças absurdas. A esperança anestesia o presente e torna as pessoas impassíveis diante da vida e de suas vicissitudes. É uma forma de passar a mão na cabeça das pessoas e entregá-las aos desígnios divinos como cordeiros diante do açougueiro. Constrói apenas utopias excludentes. Já a caridade constrói em torno do ser que a pratica uma aura de santidade que esconde, realmente, o orgulho por ser diferente e estar mais próximo de deus. É como se se dissesse: olhem, eu sou melhor, eu sou santo, eu estarei diante de deus, porque sou caridoso, ajudo as pessoas. A arrogância do humilde e daquele que se faz humilde destrói qualquer possibilidade de diálogo racional, como, aliás, o fazem também as demais virtudes. O ser humano virtuoso desumaniza-se em nome de seu deus, o que o torna um monstro inútil para o desenvolvimento da humanidade. A humanidade não precisa de seres humanos assim, mas de pessoas que tenham visão ética de respeito às diferenças, à vida e à natureza.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

166 - SHADENFREUDE

 

 (Fra Angelico - o juízo final)

Vingança. Quem com ferro fere com ferro será ferido. Olho por olho, dente por dente. E assim, cristalizada em nossa mente através de inúmeros adágios e crenças, a vingança atormenta o coração do ser humano. Não existe o mal, o mal absoluto, criação metafísica para nos iludir nas crenças de deuses cruéis e seus inimigos poderosos. Mas existe, sim, o mal praticado diariamente, como formigas que picam e fogem, como espinheiro em canteiro de flores. O ser humano tem o dom de fazer o mal. Não se contenta em viver, apenas, a sua vida. É preciso espicaçar o semelhante. É preciso pisar, esfolar, matar. E rejubila-se com isso. E goza o prazer de ver o desafeto na pior situação possível. Há, em alemão, uma palavra que resume o sentimento mesquinho de ver o pretenso inimigo na situação mais trágica, que explica o júbilo de não apenas vencer e estar bem, mas também ver o outro humilhado, despedaçado, é a alegria com a desgraça alheia: Shadenfreude. Os deuses criados por todas as religiões humanas até agora são todos adeptos da vingança. Se não estamos com eles, estamos contra eles. E para todos os inimigos, o fogo eterno, as desgraças, o sofrimento. Não há meio termo. E rejubilam-se com a destruição de cidades inteiras, porque nelas há pecadores. Shadenfreude. Vingança pura. E a perpetuação da barbárie. Nossa sociedade dita cristã construiu-se assim: na ideia da vingança. As demais sociedades deístas também. Porque deus é Shadenfreude. Se chove demais é porque há pecadores que mereciam as enchentes, a destruição de suas casas, esquecidos de que se há ali pecado é o pecado da estupidez em desafiar as forças da natureza. Se há seca é porque os deuses assim o querem, para punir aqueles que não os seguem, não se sacrificam, esquecidos de que o único sacrifício dos que convivem com seca está em aceitar a condição de miseráveis, sem se revoltar contra aqueles que lucram com a seca e espezinham os pobres para continuarem enriquecendo. É dentro do princípio da vingança que se escrevem muitas de nossas leis penais. A intenção não é punir o criminoso, afastá-lo do convívio dos demais, por ser um indivíduo perigoso, mas vingar-se dele, jogá-lo no mais fétido calabouço e deixar que seja corroído pelos vermes, como se essa vingança tivesse o condão de fazer voltar à vida aqueles que ele assassinou. Puro Shadenfreude. Então, quer-se a pena de morte, o espetáculo da morte transformado em teatro estúpido de punição, ou melhor, de vingança, para gozo dos sádicos de plantão, dos deístas de carteirinha, dos fundamentalistas de todos os credos. Corta-se a mão ao larápio, espanca-se em praça pública o desafeto, apedreja-se a adúltera, tudo como forma espúria de vingança, em nome do deus da barbárie. Os animais matam para comer, para se alimentar; o ser humano, por prazer ou por vingança. E perpetua a barbárie. Pode-se invadir um país para se vingar das atrocidades de seu governante e cometer, assim, atrocidades maiores: Shadenfreude. Como se pôde jogar sobre a cabeça de milhares de civis uma bomba atômica, como forma de punir todo um país pelo erro de seus estúpidos governantes: Shadenfreude. Como se pôde construir dezenas de campos de concentração e lá jogar milhões de pessoas e depois assá-las em fornos crematórios, como forma de se vingar contra a prosperidade de um povo que tem no comércio e no lucro a fonte de sua própria existência e, mais, como forma de punir esse mesmo povo por ter cometido e cometer ainda tantas outras atrocidades: Shadenfreude. Pôde-se e ainda se pode destruir tribos inteiras de indígenas, simplesmente porque não aceitam nossas crenças ou porque têm costumes diferentes dos nossos: Shadenfreude. E pode-se mandar para o inferno aqueles que fornicarem nus, embora sejam cônjuges devidamente unidos pelas leis idiotas de profetas mal amados ou mal interpretados: Shadenfreude. E a barbárie estupidifica a mente do ser humano. E perpetua-se.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

165 - A ESTUPIDEZ NA VIDA PRÁTICA

 

(São Paulo, 1940:  rua da Cantareira)


A estupidez humana não se resume às crenças absurdas. Também se cristaliza na vida prática, quando insiste em arrostar as forças da natureza. Paga alto o preço de construir, por exemplo, suas moradias à beira de rios que sobem e a tudo inundam, ou perto de vulcões que, a qualquer momento, entram em erupção, ou, ainda, em continuar ignorando os movimentos naturais do clima, dos ventos, das marés, enfim, em não perceber que vivemos todos num planeta em constante mutação e que temos de nos conformar a isso ou morremos. A lei da evolução é cruel, mas sábia: adapte-se ou desapareça.


domingo, 17 de julho de 2022

164 - A ESTUPIDEZ DOS CRIACIONISTAS

 

 (Kojo Marfo - The Chief And His Calabash)

A condição natural do ser humano, apesar de todos os protestos que isso possa gerar, é o ateísmo puro. Pensar num ser criador constitui-se num artifício tão falacioso quanto pensar que o mundo é ilusão. O criacionismo estúpido imagina a intervenção de um ser grandioso, onipotente, onipresente e imensamente sábio, porque não sabe olhar o universo. A cegueira não permite aos criacionistas contemplar o mundo como ele é e isso os torna imbecis para a realidade, precisam apegar-se a salmos e rezas, a livros idiotas escritos há centenas ou milhares de anos, por homens muito mais ignorantes do que somos hoje, para que esses livros ditos sagrados lhes digam como o mundo funciona. E como não há relação alguma entre aquilo que está escrito nos livros sagrados e a realidade, seu intelecto fica obnubilado pela ignorância de centenas ou de milhares de anos, gerando todo tipo de preconceito e estupidez contra os demais seres que os rodeiam. A pretensa aura de sapiência que se instaura em torno de papas, gurus, aiatolás, rabinos ou pastores de qualquer espécie devia ser inscrita nos tribunais internacionais de crime de lesa-humanidade. São monstros travestidos de homens caridosos, porque acredito que muitos deles têm alguma percepção de que o que pregam não passa de fantasia para enganar trouxas, mas continuam assim mesmo a repetir as velhas fórmulas de seus antepassados, ou por covardia, ou por estupidez, ou porque não querem perder a sinecura de que vivem e com a qual enriquecem ou se tornam poderosos. Multiplicam a estupidez simplesmente porque são cegos e surdos à voz que vem da natureza. Mas dizem-se sábios e acreditam-se sábios à força de pensar que o são realmente. Sua desumanidade torna-os, aos criacionistas e ditos delegados de deus, a pior espécie de ser humano, já que são antinaturais e antinatureza. Para eles, o que importa é a consciência tranquila diante daquilo que chamam de deus, não importando que, para isso, muitos morram ou sejam mortos.


sexta-feira, 15 de julho de 2022

163 - DUAS PRAGAS DA HUMANIDADE: METAFÍSICA E RELIGIÃO

 

(Paul Bond - Sacred-Contract-1)

A metafísica afastou o ser humano da realidade. A religião embruteceu-o. Não há como saber o que veio primeiro: se a metafísica ou a religião. Mas são dois sistemas de pensamento que obscureceram a mente humana para a realidade, para a verdade. Suas metodologias enganosas, baseadas em sentimentos e emoções, na ideia de que é preciso crer cegamente numa suprarrealidade divina ou anti-humana, desviaram o pensamento humano para aquilo que realmente importa em sua passagem pela Terra: a melhor forma de adaptar-se à natureza e a uns com os outros. Não se pode ter nenhuma complacência nem com a metafísica nem com a religião: são sistemas mórbidos, que pregam a desumanização do ser humano, sua entrega a um deus ou a uma impossível vida além da vida como solução para problemas mentais, emocionais ou, até mesmo, físicos, num processo enganoso de falsos milagres, aprofundando, com isso, a miséria humana, com o sentimento de culpa e idéia da redenção, o que torna desculpável todo e qualquer crime contra o próprio ser humano e contra a natureza. O pensamento religioso pode parecer uma espécie de bálsamo para momentos de dor profunda, mas é apenas uma fuga, um meio de enganar a dor por algum tempo, o que exige que o ser humano desvalido passe a gastar cada vez mais as suas energias na adulação da divindade em busca da cura, amortecendo-o para outras atividades mais lúcidas. O ser humano não precisa da metafísica e da religião. Sua destruição, se fosse isso possível, embora desejável, não causaria mais prejuízo do que tem sido a sua existência para a humanidade. Eles, os religiosos de todos os credos, os defensores da metafísica estupidificadora, nunca tiveram sentimento de humanidade, apesar de todos as falsas juras de amor, de paz e outras falácias que prometem. No fundo, o que resta de qualquer religião é o sentimento egoísta do lucro de seus dirigentes, a hipocrisia que vende qualquer produto, desde que bem embalado em invólucros de falsas promessas. Trocaria a vida de milhares de seres ditos santos por qualquer outro ser que tenha uma vida ética e não tenha tentado enganar as pessoas com pretensas visões místicas ou estúpidos milagres de prestidigitação. Não vale a vida desses pseudo-heróis o mal que eles causaram ao desenvolvimento intelectual da humanidade. Sua estupidez atravancou de lixo o caminho do pensamento científico e racional, com a imposição de idéias absurdas e preconceitos infelizes. O ser humano, quanto mais religioso, mais egoísta: acha que todos devem compartilhar do mesmo estado de estupidificação mística em que ele se encontra e se arvora missionário de uma causa idiota, a tentar convencer com argumentos falaciosos e ilusões criadas em suas mentes doentias a uma humanidade incrivelmente crédula e ignorante, certa de que presenciou milagres ou é capaz de fazê-los. O culto a imagens e objetos e a transferência para eles de poderes mágicos torna o religioso um ser desprezível em termos intelectuais, digno, no entanto, de total compaixão por parte de quem tenha um mínimo de senso crítico. Sob o manto da liberdade religiosa e de pensamento, esconde-se um mundo tão imensamente fantástico de falsificação, de empulhação e de extorsão, que se pode dizer que a religião se tornou o mais festejado e promissor negócio da Terra, movimentando cifras muito maiores do que o próprio sistema capitalista é capaz de fazer girar, o que torna a religião uma praga impossível de ser combatida e erradicada. Qualquer tentativa de impedir que seitas se organizem como quadrilhas para roubar o povo esbarra na gritaria inconsequente dos que defendem seus negócios com o argumento de liberdade religiosa, como se se pudesse dar liberdade à erva daninha para destruir as plantações. Por isso, não acredito na erradicação do pensamento religioso, essa praga arraigada na memória humana, de forma radical, nem em curto nem em longuíssimo prazo. Mas acredito que um processo educacional com menos influência das estúpidas teorias criacionistas e acrescido do desenvolvimento do pensamento científico possa diminuir pouco a pouco a intolerância, a estupidez e a ignorância que se escondem por trás de todo pensamento metafísico ou religioso.

terça-feira, 12 de julho de 2022

162 - POR QUE GOSTAMOS DE DROGAS (3)

 

(Theodore Pallady - Opium smoker)

Não há viagem, há apenas estados enganosos de falsa felicidade ou de falso bem-estar do cérebro, para exigir que o indivíduo se drogue. Portanto, a droga não faz do indivíduo um ser mais adaptado do que outro, apenas leva-o a acreditar que o mundo a seu redor se tornou menos agressivo para ele, ou que o seu corpo deixou de ser motivo de sofrimento ou, ainda, que as barreiras morais impostas pela sociedade desapareceram e o indivíduo pode tudo, inclusive matar ou matar-se. Assim, a tendência é buscar sempre o estado de distanciamento da realidade provocado pela droga, como forma de driblar as angústias da inadaptação. O artificialismo da situação leva-me, portanto, a concluir que a tal fuga pelas drogas é uma rota sem saída, porque o indivíduo perde aquilo que é um dos bens mais preciosos da vida, além da própria vida: o domínio de seu pensamento, o domínio de si mesmo, a sua capacidade de sonhar os seus próprios sonhos, de imaginar os seus próprios caminhos e viver a sua própria vida. Perde o direito de decidir sobre si mesmo. O efeito das drogas deve ser, guardadas todas as devidas proporções, como contemplar um pôr do sol tirado por uma foto ou visto na tela do cinema e o verdadeiro ocaso. Por mais belo que seja o do filme, não terá comparação com a realidade, por mais simples que ela seja. Perder a consciência, perder a lucidez da visão do mundo, por mais dolorida que seja essa visão, por mais difícil que seja a realidade a ser enfrentada, não vale o prazer ou até mesmo o desprazer de enfrentar o mundo como ele é. Essa visão é uma experiência milhares de vezes mais rica do que fugir através de um estado alterado de consciência provocado seja por que droga for. Por isso, a minha ojeriza em relação às drogas: funcionam tanto como entorpecimento e desfiguramento da realidade, quanto qualquer fuga dessa mesma realidade através da metafísica ou da religião. Pode-se explicar, portanto, o uso e abuso de drogas, mas não se pode justificar. Há, sob a minha condenação, uma visão estritamente humana, muito humana. Jamais uma condenação moral ou com qualquer resquício moralista. O ser humano é livre para decidir por si mesmo o seu destino. Por isso, acredito que a depuração de todos esses desvios, e considero o uso de drogas alucinógenas um desvio da trajetória humana (embora acredite também que seja uma trajetória necessária), se dará de forma lenta e gradual, para a formação de uma humanidade livre da necessidade de usar muletas para enfrentar a realidade e com ela conviver de forma lúcida e racional. Quando e como isso se dará, deixo para as mentes criativas imaginarem ou sonharem, de preferência, se possível, que essa criatividade não seja provocada por estados alterados de consciência, provocados pelo uso de drogas alucinógenas.

sábado, 9 de julho de 2022

161 - POR QUE GOSTAMOS DE DROGAS (2)

 

(Max Hierro - opium smoker)

As dificuldades começam aí: na luta para nos tornarmos coerentes com o mundo que nos cerca, para não sermos levados pela maré, para não sermos surpreendidos na contramão da vida. Uns mais, outros menos, todos buscam viver o máximo possível. E como temos consciência de que vivemos e morremos, e como temos consciência de que o corpo em que habitamos é nossa única ligação com o mundo, com a vida, podemos, em função de milhares e milhares de heranças genéticas que carregamos, não obter um nível desejável de adaptação, não só ao meio em que vivemos, mas também ao corpo que nos dá vida. Por menor que seja essa inadaptação, há sofrimento. Em graus tão variados, que não nos permitimos quantificá-lo. Sofrimento que gera tanto os gênios quanto os idiotas. Se, na natureza, o animal que não se adapta é morto pelos seus ou é abandonado para morrer, entre os seres humanos somente em muito poucas culturas há essa possibilidade, porque o grau de consciência de nossa humanidade não nos permite que assassinemos friamente um filho que nasça com algum tipo de inadaptação, embora haja registros históricos de povos que o fizeram (ou ainda fazem?). Além disso, não há apenas as inadaptações físicas: muitas dessas inadaptações são fruto de nossa química cerebral, que nos faz pensar diferente do comum dos mortais, que nos faz ver o mundo de forma enviesada em relação aos outros, ou que nos faz agir de forma diferente, configurando desvios de comportamento mais ou menos inaceitáveis pela sociedade. Dentre os milhões de seres humanos com algum tipo de desvio do que se chama normalidade, uma categoria arbitrária, muitos e muitos só vislumbram saída em algum tipo de fuga através de fármacos que lhes entorpeçam o pensamento diferenciado ou lhes permitam agarrar-se a algum tipo de lucidez possível na luta pela adaptação à sociedade, ao mundo e, principalmente, a si mesmos. As drogas, não importa quais sejam, agem na química cerebral e modificam as sinapses mentais, alterando a percepção que as pessoas têm do mundo, enquanto estão agindo. Não há nenhuma porta metafísica de percepção de outras realidades, mas apenas a exacerbação de uma visão que já existe no cérebro e que a droga, ao estabelecer ligações esquecidas ou obliteradas pela realidade, ativa ou reativa como fuga dessa mesma realidade. Como são elementos químicos, viciam e, ao viciarem, a droga faz de seu usuário um escravo de estados alterados da consciência como forma de adaptação a um mundo que, agora, não é mais o real, mas o mundo criado e transfigurado pela capacidade inaudita do cérebro de inventar e imaginar, a partir da realidade, outras realidades mais agradáveis ao indivíduo. Alguns mitos se formam a partir daí, mitos que a ciência nunca comprovou. Por exemplo, um indivíduo criativo não tem essa qualidade exacerbada pela droga e, às vezes, pelo contrário, tem-na diminuída, mas o cérebro engana o pensamento lógico e faz que ele acredite estar tendo visões fantásticas e ideias ainda mais incríveis do que em estado normal. O vício químico obriga, por outro lado, a que o indivíduo tome doses cada vez maiores ou que as tome sempre, ligando-o definitivamente a um estado de imaginação a que os drogados chamam de viagem.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

160 - POR QUE GOSTAMOS DE DROGAS (1)

 

 (Edgard Degas: absinthe)

Ainda o problema do uso das drogas. A posição moral oficial é condenar e criminalizar definitivamente o uso das drogas, ou ainda, numa posição mais radical, demonizar consumidores, traficantes e dependentes. Tal posição torna-se extremamente confortável, porque, a partir dela, todas as objeções caem por terra: não há discussão, não há racionalidade. Fiquei, então, preocupado: se condeno o uso de drogas, assumo um moralismo com o qual não concordo. Um beco sem saída? Devo buscar uma razão que não esteja ligada à metafísica, ao moralismo platônico, ou mudo de lado. Apelo para a ciência: se tenho pensamento científico, se a ciência condena o uso de drogas, logo, não devo estar errado ao assumir uma posição também contrária. Mas isso é ir a reboque de informações que me passam e que eu não posso conferir se estão certas ou erradas. Penso, então, no indivíduo, apenas no indivíduo. Por que razão alguém há de se drogar? Que prazer é esse? Como nunca me droguei, também aí o terreno é movediço, pois não tenho nem experiência nem conhecimento suficiente para dizer em que estado fica o indivíduo que se droga. Tudo é, portanto, muito nebuloso para mim. Passar pela experiência de uma viagem para a qual não estou preparado, isto é, experimentar alguma droga para ver como é, isso, definitivamente está fora de meus propósitos. Portanto, tudo o que vou escrever a partir de agora situa-se no terreno da especulação, do ouvir dizer, do haver lido e pesquisado, enfim, da experiência tomada emprestada. Posso passar longe da verdade, ao tentar explicar o que eu penso do uso de drogas e, até mesmo, passar por moralista sem causa. Um risco menor do que ficar no lusco-fusco das ideias mal resolvidas e não tomar uma posição clara a respeito. Volto ao indivíduo. Nele pode estar o motivo de minha recusa às drogas e por ele começo a investigar a minha própria ojeriza ao ato de drogar-se. Ao nascer, trazemos em nossos corpos imperfeitos uma grande carga genética de que não sabemos a origem, ou sabemos muito, muitíssimo pouco. Há em nossas células, a conformar nossa índole, milhares de influências de inúmeras gerações, desde que o ser humano se descobriu a pensar ou até mesmo antes, quando ainda rastejávamos nos pântanos como organismos primitivos. Nesses milhões de atos evolucionistas que nos transformaram em seres pensantes e comunicativos, nossos antepassados caminharam por sendas inimagináveis, na luta pela vida e pela sobrevivência em ambientes hostis. Experimentaram de tudo. Comeram de tudo. Mataram e morreram milhares e milhares de vezes, para chegarem a um organismo que hoje atende por homem e mulher, num cadinho misterioso de influências, de heranças das quais ainda não temos a mínima ideia. E mais: nessa trajetória intrincada, cada organismo humano é único, apesar da quase total semelhança. Impossível quantificar o quanto somos iguais e o quanto somos diferentes. Talvez, numa tentativa de aproximação, sejamos muito semelhantes numa percentagem que se aproxima em muitas casas decimais dos cem. Mas, a milésima da milionésima parte de diferença que temos de uns para com os outros já nos torna únicos e completamente diferentes. E todos, desde que nascemos até a nossa morte, lutamos para nos adaptar. Ou seja, viver é tentar adaptar-se ao mundo. De milhões de formas diferentes, procuramos nos adaptar ao meio em que vivemos. Isolados ou gregários. Em pequenas ou grandes comunidades, felizes ou infelizes, loucos ou sadios, todos temos um só objetivo: adaptarmo-nos.

domingo, 3 de julho de 2022

159 - DROGAS E SOCIEDADE

(Piet Mondrian - Willow Grove, Impression of Light and Shadow, c. 1905)


E então, eu pergunto: é esse o caminho dos seres humanos, na sua trajetória sobre a face da terra? O que viria de uma sociedade em que as drogas, todas as drogas, fossem livres? Não seria essa uma forma eugênica de escolher os melhores para continuar o processo evolutivo, depois de uma fase de caos absoluto? O destino humano estaria definitivamente associado e atrelado aos interesses individuais, ou seja, toda a sociedade construída, e muitíssimas vezes muito mal construída, até agora foi apenas um arremedo do verdadeiro destino do ser humano? Estão nas drogas que amortecem o pensamento o futuro e o nascimento de um novo ser humano que se consumirá até desaparecer, dando lugar a uma outra espécie geneticamente imune ao seu uso? São questões que me assolam, quando penso que muitas pessoas defendem a total descriminalização das drogas, como forma de resolver os seus problemas pessoais, a sua inabilidade para tratar as coisas comuns da vida, a sua inadaptação orgânica à própria existência ou as suas crises existenciais e o desconforto perante o mundo que as ameaça com cobranças, com regras e leis às quais não conseguem se conformar. O ser humano é, mesmo, o mais complexo elemento da natureza e a convivência com desigualdades tem sido o seu grande salto de humanização, mas levantamos dúvidas cruéis quando está em jogo o absolutismo do direito individual contra o absolutismo do direito social. Qualquer julgamento que se faça a esse respeito resvala no moralismo absurdo da defesa de um dos dois extremos. Porque julgo moralista tanto a condenação de um lado quanto a condenação do outro lado. Defender o direito de contrariar a sociedade de forma total e absoluta é assumir uma posição moralista de condenação do outro tipo de vida, da mesma forma que condenar de forma absoluta os que se arvoram o direito de fazer o que quiserem com o próprio corpo e com a própria vida também se constitui numa posição moralista. O equilíbrio entre as duas posições torna-se quase impossível. Como não há o que se condenar, a visão de quem observa os contendores nessa luta parece indicar que, primeiro, embora sejam muitos os que pregam a liberdade absoluta, não são a maioria; segundo, a sociedade constituída, não importa em que tipo de regime, tem o fôlego de milhares de anos de imposição de valores e não vai abrir mão deles; terceiro, e talvez o mais importante a favor da sociedade, há o fator econômico, aquele que pesa mais do que qualquer ideologia religiosa ou filosófica: as drogas, ao mesmo tempo em que movimentam um lado economicamente ativo da sociedade, enriquecendo a uns tantos, não podem se tornar bem comum, simplesmente porque não interessa a quem aufere esses lucros que eles se coletivizem e, além disso, a própria sociedade economicamente produtiva, que se utiliza das drogas em suas festas e nos seus momentos de revolução individualista, não tem nenhum interesse em se desestabilizar em prol de uma causa de futuro incerto, preferindo manter tudo como está, sem o ônus de permitir o descontrole que pode levar ao caos o sistema produtivo. Porque liberar significa democratizar, e democratizar significa a possibilidade de perder o controle sobre a mão de obra que sustenta, com seu trabalho de formigas mal pagas, todo o sistema construído de forma sistemática por gerações e gerações de umas poucas famílias que dominam a economia em cada uma das nações da Terra. Portanto, continuarão a ganir ao longo dos caminhos os que a sociedade vê como cães desgarrados a defender a liberalização total das drogas como solução que essa mesma sociedade vê, com olhos às vezes condescendentes, às vezes com olhos condenadores, como uma ilusão, como um sonho ou pesadelo que a mão pesada da repressão e da polícia irá, com certeza, no seu devido tempo, coibir. Porque, numa visão extremamente pragmática, aquilo que
tem solução solucionado está.



 tem solução solucionado está.

187 - PALAVRA FINAL: O ALÉM DO HOMEM

  (Vincent van Gogh) Tenho plena consciência de que tudo quanto eu escrevi até agora constitui um rio caudaloso, uma pororoca, sobre a qual ...