sábado, 28 de agosto de 2021

062 - HISTÓRIA, PODER E DEMOCRACIA

(Nancy Farmer - royal wedding)


A História, como disciplina de enaltecimento dos poderosos de plantão, está condenada à morte por excesso de estupidez. A visão crítica dos conquistadores, dos alexandres e dos napoleões, dos césares e dos stalins impõe-se como única saída para os historiadores recuperarem a sanidade. Chega de ensinar à juventude que os heroísmos constituem o sal da trajetória humana. Chega de ensinar à juventude que os poderosos devem continuar determinando os caminhos do ser humano. O poder é, por natureza, corrupto e corruptor. Mesmo por trás das grandes boas intenções, há sempre o lado obscuro da derrota dos adversários e, quase sempre, sua consequente eliminação física ou de qualquer outra natureza. As paredes dos palácios dos governos, erguidas com o suor e sangue dos operários e dos anônimos do mundo, escondem mais tragédias e feitos vergonhosos do que a meia dúzia de atos heroicos que costumam aparecer nos compêndios escolares da história oficial. Recuperar o ideário republicano, no seu sentido político mais profundo, deve ser uma das preocupações, digamos acadêmicas e conceituais, do historiador moderno. E isso implica tornar claro ao cidadão o que ele precisa fazer e conhecer para se tornar dono de si mesmo e não cometer as bobagens que o sistema democrático permite que ele cometa, porque, se há consistência teórica nos modelos de democracia participativa, há ainda muito que avançar no que se refere ao seu sistema formal. As falhas do modus operandi da democracia exigem uma reflexão profunda e um lento processo de convencimento das massas e de seus representantes para elaborar medidas aperfeiçoadoras do sistema, que minimizem os efeitos de escolhas desastradas ou, até mesmo, as evitem, num futuro próximo.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

061 - O AÇOUGUE FUNDAMENTALISTA

 

(Antoine Caron - 1521-1599 - Augustus und die Sibylle von Tibur)

Voltar os olhos para o passado e contemplá-lo como um espelho do futuro tem sido a maldição do homem. O passado está morto, enterrado, mas não superado. Admiramos como feitos extraordinários conquistas sanguinárias de todos os tempos. Erigimos estátuas aos guerreiros e assassinos. Adoramos os falsários da ideologia, com seus sistemas filosóficos e religiosos baseados em superstições tolas. Ajoelhamo-nos diante de deuses rancorosos e vingativos. Acreditamos em valores que privilegiam a morte em detrimento da vida. Criamos falsos motivos para continuar matando. Inventamos leis e regulamentos para manter os excluídos ainda mais distantes de quaisquer possibilidades de se humanizarem. O ser humano é seu próprio lixo. E, como lixo, revira a história para comer merda e se alimentar de vermes. Somos vermes e queremos ser deuses. Ainda estamos muito longe de atingir um grau mais sofisticado de civilização, pois tem prevalecido até agora o conceito de que a civilização precisa matar para se impor, quando, na verdade, uma civilização não se impõe, apenas existe e respeita as diferenças como respeita a si mesma. O grau de barbárie varrido para debaixo do tapete da história da humanidade e visto como elemento civilizador tem atingido as raias da loucura, neste século vinte e um que se inicia com guerras de conquista e aprofundamento da condição de miserabilidade de inúmeros povos. Os Estados Unidos se auto-intitulam xerifes do mundo, com direito a invadir uma outra nação e matar sem dó seus pretensos inimigos. Gastam-se milhões de dólares em armamento e guerras, enquanto a África agoniza em miséria e doenças. Aprofundam-se as diferenças entre Ocidente e Oriente por motivos ideológicos, religiosos e de estranhamento de culturas diferentes. Criam-se barreiras de ódio para disfarçar interesses econômicos de grandes corporações que se utilizam de todo o ideário deísta para auferir lucros fantásticos para seus acionistas confortavelmente instalados em ilhas de tranquilidade defendidas por jovens soldados que morrem como insetos nos campos de batalha no Iraque ou no Afeganistão, para defender um falso orgulho nacionalista ou, o que é pior, para tentar caçar e matar terroristas famintos e aterrorizados que ousaram, um dia, confrontar o ideário capitalista desses monstros de cara rosada e sorridente que frequentam a alta sociedade do mundo dos que mandam e elegem presidentes idiotas ou mal-intencionados, comprometidos com o poder de seus bilhões de petrodólares. O que Sócrates, Platão, Aristóteles e seus seguidores diriam do mundo de hoje? Com certeza enalteceriam o poder de fogo e de conquista da nação mais poderosa do mundo e se orgulhariam da democracia que eles inventaram e que essa nação tripudia com seu sistema espúrio de eleições em que se joga a moedinha de cara ou coroa apenas como forma de enganar os incautos, pois nada há de mais semelhante do que as duas faces de uma mesma moeda. O conceito de democracia representativa apodreceu nos meandros da corrupção, da disputa do poder pelo poder. E não há nada para se pôr no lugar. Aquilo que o ser humano inventou, o dinheiro corrompeu. Os Estados Unidos, como modelo de nação, nasceram dos anseios espúrios de huguenotes, batistas, anglicanos e tantas outras igrejas que têm em comum o ódio ao diferente e o arraigado amor a seus princípios bíblicos fundamentalistas. Os Estados Unidos cresceram graças à capacidade asinina de trabalho dessas mesmas tribos que, à medida que se fortaleceram, tornaram-se cada vez mais sedentas de sangue, de poder, de desejo de domínio e de expansão, para levarem suas ideias e seu ideário fundamentalista cristão ao restante do mundo. Este o mal dos fundamentalistas, de todos os fundamentalistas: não podem aceitar que qualquer rebanho escape das bênçãos de seu deus, mesmo que seja preciso dizimar os pagãos, os apóstatas, os hereges, os diferentes, enfim. Aos olhos de seu deus, mais vale salvar a alma, matando o corpo, do que deixar o outro sem a luz de seus ensinamentos. Submissão à vontade do deus significa tornar-se missionário de seu desejo. Matar e morrer por esse deus é a palavra de ordem aos milhões de seguidores que entregam sua carne ao açougue das guerras de conquista, enquanto os comandantes amealham os despojos para aumentar sua riqueza e seu poder. Acenderam uma vela a esse deus e outra ao diabo, ao construírem uma nação ao mesmo tempo profundamente cristã, no mais torpe sentido dessa doutrina, e materialista, baseada no mais extremado individualismo capitalista que prega o direito à propriedade e a defesa dessa propriedade com unhas, dentes, conquista e destruição de qualquer pretenso inimigo que ouse ameaçar, contestar ou apenas erguer os olhos contra algum de seus princípios. Os Estados Unidos são, portanto, o xerife do mundo baseados em verdades absolutas. O povo estadunidense, mesmo quando se opõe à vontade autoritária de líderes bélicos, não tem como escapar das armadilhas de sua história. É um povo condicionado a pensar que o mundo todo marcha com o pé trocado, enquanto só eles têm condição de seguir o ritmo dos tambores. E tambores batidos pelos ideólogos fundamentalistas que marcaram indelevelmente as páginas de construção e soerguimento de um Estado dominado por crenças milenares que alimentam a estupidez e a cupidez humanas, desde os tempos de um pretenso poeta cego chamado Homero. E é sábia a lenda que lhe atribui tal defeito, pois somente a cegueira poderia levar um ser humano (ou um conjunto de seres humanos) a construir um espetáculo de horrores bélicos e carnificinas em cima de uma estrutura literária de tamanha beleza. E é este o paradoxo trágico da história do homem: construir palácios de cristal, para moradia de deuses e governantes, com os ossos, a carne e o sangue de milhões de anônimos encontrados no lixo das guerras e das carnificinas inúteis.


domingo, 22 de agosto de 2021

060 - COLOCAR A METAFÍSICA NO LIXO DA HISTÓRIA

(Aristóteles)


Nós nos habituamos a sacralizar certos cânones. A Grécia antiga é um deles, com a filosofia clássica de Platão, Aristóteles e todos os pensadores que fundaram a metafísica. Se deixaram uma metodologia de pensamento, afundaram, por outro lado, essa mesma metodologia em raciocínios bizarros e metafísicos que destruíram a capacidade humana de buscar alternativas materialistas para uma visão de mundo menos abstrata. É preciso remontar a filosofia. É preciso colocar na lata de lixo da história os pensadores antigos, Platão puxando a fila dos imbecis. Nada mais chato do que ler Platão. Nada mais humilhante para o homem do que o seu blá-blá-blá metafísico. E Aristóteles, com seus sofismas absurdos, a buscar uma identidade deísta como final de tudo, criou armadilhas para si mesmo e para a humanidade. Suas baboseiras só serviram para a igreja católica romana assentar suas garras sobre a consciência do homem e fazer o mal que sempre fez e continua fazendo. Fora com todos eles! Ler os filósofos gregos é perder tempo e neurônios com baboseiras que não levam a nada. Só inventaram teorias confusas que a ciência e a simples lógica ou observação mais atenta da vida e da natureza contradizem. Escondem seus descaminhos lógicos atrás de sofismas e raciocínios pseudoprofundos. Escreveram numa linguagem complexa que pouca gente entende e quando se consegue entender o que escreveram e pregaram, descobre-se que não há nada para ser entendido. São palavras vazias e inúteis. Não, definitivamente, não se constituem em patrimônio da humanidade, esses filósofos imbecis de um mundo que não tinha a beleza e a estrutura racional que nos impingiram. A Grécia antiga era um mundo de bárbaros metidos a besta. Tinham uma estrutura escravocrata e machista. Viviam em guerras absurdas por motivos fúteis, atribuindo a deuses obtusos os males que corroíam uma sociedade em que os valores fundamentais eram o culto ao corpo e à luta. Se construíram templos fantásticos, fizeram-no em homenagem a esses deuses estúpidos que vagavam pelo mundo como reflexos de sua sociedade podre. E esses templos e construções, com suas obras de arte, podem, sim, se constituir em algo digno de admiração, pois são fruto da imaginação e da técnica, não da filosofia. E criaram o teatro, talvez a mais digna das invenções humanas. Assim mesmo, como manifestação do gênio humano, teria sido inventado de qualquer jeito, em outro tempo, por outros povos. A civilização grega é uma das grandes farsas da humanidade. Aliás, não há uma só civilização humana que não tenha sido ou não seja fundamentalmente bárbara e sanguinária. O ser humano é assim: cultua o que há de pior em sua história, para enganar a si mesmo, para impor valores que nada têm de humanos, são apenas restos, vestígios, de sua condição animal. Enquanto não assumirmos que não passamos de bichos com poder de imaginar e construir, de matar e destruir, não superaremos os instintos bestiais que ainda temos dentro de nós.


quinta-feira, 19 de agosto de 2021

059 - SALVAR A TERRA

 



A Terra é a joia rara do Universo. Talvez jamais consigamos encontrar na imensidão dos astros outro planeta com as mesmas ou semelhantes condições de vida que tem a Terra. Não podemos dizer que não possa existir outro planeta em que a vida tenha surgido e atingido estágios extraordinários de desenvolvimento, mas chegar a esse outro planeta será provavelmente uma tarefa impossível de ser concretizada pelo ser humano, porque as distâncias dentro do Universo são tão imensas, que nenhuma tecnologia logrará diminuí-las. E por ser um corpo tão especial, onde vicejou a vida e essa vida evoluiu para formas tão complexas como o ser humano, deve a Terra merecer desse ser humano todo o cuidado possível para que a vida mantenha o seu equilíbrio e não desapareça. Quando olhamos para fora e vemos o nosso planeta com os olhos limitados por horizontes e com o ponto de vista observador situado na própria Terra, podemos contemplar imensidões e recursos aparentemente ilimitados. Mas, se num esforço de imaginação e concentração, deslocássemos nosso ponto de vista para um astro distante, como por exemplo, o Sol, veríamos a Terra como um ovo frágil e delicado, passível de ser esmagado e desaparecer a qualquer oscilação cósmica. Na verdade, nenhuma das duas visões é inteiramente verdadeira nem inteiramente falsa. A joia desse Universo que não conhecemos tem, na verdade, um equilíbrio delicado na ordem das coisas, mas tem também uma grande capacidade de regeneração e sobrevivência em si mesma. No entanto, não são infinitos os seus recursos. A humanidade que, por ter atingido um alto grau de evolução, governa esse mundo e dispõe de seus recursos, tem também a capacidade de destruir, com sua incompetência quanto à visão de futuro, esse equilíbrio complexo que permitiu o surgimento da vida e permite sua evolução. Durante milhares de anos, a humanidade viveu com um certo equilíbrio em relação à natureza. Sua capacidade de predador mantinha-se limitada aos meios de que dispunha. Na era da tecnologia, no entanto, nesses dois últimos séculos, a humanidade multiplicou muitas vezes sua capacidade de exaurir da Terra os recursos que, antes, mantinham-se intocados ou semi-intocados, por falta de recursos para explorá-los, situação agravada pelo crescimento populacional que exige cada vez mais a descoberta de novos meios de sobrevivência. Assim, numa espiral inflacionária de aumento populacional e novas tecnologias, o equilíbrio pode-se romper e a Terra, exaurida em seu potencial de vida, tornar-se mais um corpo morto a girar inutilmente em torno do Sol. Só os humanos podem matar a Terra e só os humanos pode salvá-la. E o processo de salvação da Terra é uma tarefa complexa, que depende da vontade política de muitos dirigentes e de muitos povos. Não é uma tarefa impossível, mas se a humanidade não conseguir controlar o aumento populacional excessivo, a poluição ambiental e a exploração predatória dos recursos naturais, o futuro será de muitas dificuldades, se chegar a haver futuro. Não sou pessimista, mas tudo depende da capacidade humana de reduzir a ignorância e a estupidez, de ultrapassar a barbárie que ainda comanda as multidões humanas para que se chegue a um grau de conscientização que permita ao ser humano enxergar com objetividade o que acontece em sua casa e tomar providências sérias para o equilíbrio das forças da natureza e, consequentemente, para a sobrevivência da raça humana. Não há meios termos. Ou o ser humano supera a ignorância, o preconceito, as diferenças raciais, sociais, religiosas e culturais, ou naufraga com a exaustão da Terra. A união dos povos ainda é um sonho muito distante, mas só ela poderá salvar o planeta: não há outra saída para o futuro da humanidade. Unir-se ou perecer parece ser a lei final de salvação. A barbárie, o extermínio e a corrida pela conquista de um povo por outro caminham ao lado da explosão demográfica. Enquanto não houver controle rígido da população terrestre, para que ela se estabilize em níveis aceitáveis de crescimento dos meios de produção, o equilíbrio do planeta estará em perigo, porque não é possível fazer-se a união para a salvação enquanto houver ignorância, enquanto houver desníveis profundos do domínio das tecnologias mínimas de sobrevivência e do conhecimento ético de respeito e compreensão da realidade. As ilhas de conhecimento científico de ponta podem continuar sendo ilhas de excelência, mas não podem conviver com a estupidez profunda que reina nos grotões sem escola, sem comunicação com o restante do planeta e, principalmente, sem a percepção mais clara das relações mais sutis entre as várias sociedades, sem o princípio ético do respeito à vida e às diferenças. O que se pede não é uma uniformização de conhecimentos e culturas, mas a capacidade de aceitar visões de mundo diferentes e, ao mesmo tempo, tão comuns no desejo de preservação do ser humano. A imposição de cultura é uma forma de fascismo, mas a liberdade de manter intacta uma cultura e, ao mesmo tempo, fazê-la relacionar-se com todas as outras formas de conhecimento, para dar e receber influências enriquecedoras, é a forma mais refinada de democracia, de busca de sistemas mais justos de convivência. Somente quando a palavra respeito estiver estampada em todas as cartilhas e profundamente encravada na mente e nos corações dos humanos, o caminho para a união e para a salvação poderá começar a ser trilhado e o mundo poderá, então, sonhar com dias melhores. Mais uma utopia, sem dúvida nenhuma, mas a busca de utopias salvacionistas, sem nenhum viés metafísico, religioso ou excludente, é a única saída para o gênero humano e para essa joia do universo que possibilita a existência humana.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

058 - BUSCAR UTOPIAS

   

( Michel Michaux -les musiciens de San Marco)

crença numa democracia absoluta não condiz com a realidade humana e com a natureza. Deve-se, sim, buscar sistemas de justiça, de igualitarismo social e político, de meios que tragam oportunidades para todos. Até mesmo, oportunidades iguais. E, acima de tudo, pregar e praticar o respeito ao humano. No entanto, não há democracia na natureza e não há democracia entre os humanos. Somos parte de uma cadeia evolutiva, em que há desigualdades gritantes entre os seres. Alguns nascem tortos, defeituosos, frutos de problemas genéticos, com dificuldades imensas de adaptação à vida. Outros nascem mais aparelhados para a vida, até mesmo mais inteligentes. Respeitar essas diferenças é democrático e é obrigação de todos. Cuidar para que os menos ajustáveis tenham a melhor vida possível é dever de um estado democrático e de uma sociedade justa. O deísmo os trata com os princípios da caridade, ou seja, são vistos como criaturas de deus e merecem comiseração. Esse não é o caminho. Não merecem comiseração, mas respeito. São, sim, uma espécie erro do processo evolutivo, experiências que não deram certo, mas não podem ser descartados como inúteis. Porque são seres que nasceram assim para que a natureza, ao promover desvios e atalhos, siga o seu curso e obtenha melhores resultados. E a vida humana tem de ser respeitada, por mais precária que seja. Não com o dó e a comiseração dos deístas, mas com o respeito devido aos processos da natureza. A humanidade criou maravilhas como a música, a literatura, a poesia, as artes, as ciências e os esportes, e ainda muitas coisas mais. Obras de um ou mais gênios, de seres cuja capacidade intelectual transcende até mesmo nossas mais complexas teorias sobre a inteligência humana. Seres privilegiados que viveram para nos espantar e maravilhar com suas criações, com sua capacidade de interpretar uma determinada realidade e transformá-la em beleza ou melhoria para o gênero humano. Podemos discordar profundamente de muitos de seus pensamentos, de seus sistemas filosóficos, mas não podemos negar-lhes a condição de seres especiais. Suas obras, no entanto, não alcançam nem a maioria das pessoas que vivem, hoje, por exemplo, sobre a terra. Porque uma parte considerável é constituída de homens e mulheres desprovidos de capacidade de entendimento dos mais rudimentares sistemas matemáticos, físicos, biológicos, em suma, de entendimento de como funciona a vida, por mais simples que isso seja. Incapazes de uma compreensão mais profunda da própria existência, arrastam suas vidas no mesquinho mundo das miudezas diárias e, quando colocados diante do belo, podem até obter por instantes o alumbramento do universo, mas são incapazes de absorver qualquer teorização científica em relação aos fenômenos do seu próprio dia a dia. A sua compreensão do mundo resume-se a ideias provindas de um longo e penoso aprendizado de seus ancestrais, uma meia dúzia de conceitos que lhes permitem viver e sobreviver, como, por exemplo, rudimentos de agricultura e manipulação de alimentos. Mesmo que, por uma condição mágica qualquer, pudéssemos transformá-los, de repente, em seres mais aptos a uma compreensão mais complexa do mundo, isso não os tiraria da situação miserável em que vivem. Como é impossível torná-los melhores por mágica, somente um esforço considerável por parte da sociedade dita mais culta pode, primeiro, tirá-los da miséria, matar-lhes a fome e provê-los de meios menos brutais de sobrevivência e, depois, conseguir que se eduquem, que eduquem os filhos e netos, para que as próximas gerações obtenham, pouco a pouco, uma noção mais clara do mundo e atinjam estágios de evolução que lhes permitam chegar às obras dos grandes artistas, filósofos e cientistas que, a essa altura, já terão, por sua vez, avançado milhares de anos à frente de seu tempo para desvendar outros mistérios do mundo em que vivemos. Será, portanto, impossível que todos os homens, democraticamente, tenham acesso ao conhecimento mais profundo, embora seja essa a utopia que devamos perseguir sempre. Porque buscar utopias é uma das razões da existência humana.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

057 - CASTAS SACERDOTAIS DEÍSTAS



(Kris Kuski: detail - sanctuary of the bewlidered)


 
A necessidade de pregação que toma de assalto a mente dos sacerdotes deístas e a necessidade de conversão dos ímpios e descrentes por parte de cristãos, budistas, islâmicos ou qualquer outra crença deísta são, sem dúvida, um outro grande mal desse tipo de pensamento. Não basta crer e fundar sua crença. É preciso convencer os outros e fazê-los participar ou comungar de suas ideias e de suas cerimônias. O cerimonial deísta é sempre muito variado e sempre muito sugestivo. Tem por objetivo hipnotizar as mentes, sugestionar os sugestionáveis, atrair pela organização e pela possibilidade de ascensão e exposição social em um ordenamento hierárquico de cargos e funções que estimulam a vaidade humana e o desejo de prevalecer e de ser mais entre seus pares, que é típico da condição humana. Por isso, toda igreja, por mais simples e menor que seja, tem sempre uma ordem, uma hierarquização, um sistema de castas falsamente democrático, que busca estimular o crente a seguir determinadas regras para obter determinadas benesses junto ao deus ou ao sacerdote principal. A humildade, geralmente apregoada por todos os sacerdotes, de todas as religiões, tem por objetivo quebrantar o ânimo dos mais afoitos e disciplinar o rebanho à obediência cega. E são muitos os subterfúgios de que lançam mão os fazedores de crentes para manter o rebanho em harmonia com os princípios da sua igreja. Podem ser de natureza meramente espiritual, com uma série de ameaças de punição, até a promessa de uma vida utópica e maravilhosa depois da morte. Com isso, quase sempre faturam o suficiente para si e para o deus, ou seja, a igreja tem de expandir, de mostrar força, de erguer templos e cobrir-se de ouro, para que os fiéis se sintam mais protegidos, ao ver que o deus recompensa o seu esforço com a riqueza ou grandeza de suas instalações. Não há exemplo de igrejas ou seitas que progrediram sem o esforço extraordinário de seus seguidores para erguer sistemas concretos de projeção de sua fé. Os fiéis podem ser mantidos em círculos primitivos de pensamento ou de condição social, mas não a casta sacerdotal, sempre muito bem nutrida e muito bem acondicionada em suas mansões, em seus templos e gozando de todas as comodidades que condenam em seus fiéis. A hipocrisia é, portanto, o lema, a bandeira mais consistente das classes sacerdotais, dentro do sistema deísta. Os líderes religiosos posam de grandes homens, de sábios ou de grandes ascetas, mas a verdade é que, na sua maioria absoluta, são profundamente egoístas, ególatras e ambiciosos. Temem qualquer ameaça ao seu poder, a que se agarram com unhas e dentes. Fazem de tudo para serem cortejados e para influenciar na vida diária de todos os cidadãos. Opinam sobre tudo e mantêm sempre o ar de profunda sapiência, mesmo quando destilam a mais infame mentira, para que sua autoridade se sobreponha até mesmo à autoridade de chefes de estado legalmente constituídos. Impingem à sociedade suas ideias retrógradas, escondendo-se atrás do argumento de que são representantes do deus e, por isso, atribuem-se qualidades acima dos vis mortais, fazem-se sagrados, e, por serem sagrados, são intocáveis. Sua presença daninha corrói por dentro as sociedades, os sistemas políticos e a própria ideia de democracia. Por isso se acomodam a qualquer sistema: tanto bajulam os líderes democratas como se juntam aos ditadores de qualquer ideologia e se sentem bem ao seu lado. O verdadeiro sentimento religioso dessa malfadada casta de dirigentes é o amor ao poder e ao dinheiro. No fundo, são os mais lúcidos homens do planeta, pois, através da mentira que criaram, conseguem sobreviver e manter uma vida invejável de luxo e luxúria segundo os seus desejos mais torpes. O deísmo torna-se, por isso, a mais antidemocrática das crenças humanas, apesar de ser a democracia um processo complexo e, possivelmente, utópico em seu conceito mais puro.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

056 - ATEÍSMO É CONDIÇÃO NATURAL DO SER HUMANO

(Adriana Varejão - transbarroco)


Um mundo ateu. A utopia mais que desejada. Mas que não deve ser confundida com o ateísmo marxista ou falsamente marxista provindo de um organismo estatal. A ditadura de um ateísmo de estado seria tão ou mais prejudicial do que o deísmo até agora praticado. Ateísmo é um estado de consciência, não é nem mesmo uma filosofia. Filosofia pressupõe sistema complexo de pensamento, doutrinas e princípios. O ateísmo, não. Ser ateu é simplesmente não aceitar a estupidez da existência de um ente criador do universo e rejeitar qualquer tipo de culto religioso e dar um pé na bunda da metafísica. Nada mais simples e, ao mesmo tempo, mais complexo. Porque significa livrar a mente de superstições e ideias absurdas. Se o ateísmo passar a ser visto como um sistema filosófico, deixará de ser ateísmo para ser um novo sistema metafísico. Significará trocar seis por meia dúzia. E isso é tão estúpido quanto acreditar em deus. O mundo ateu deve ser apenas um mundo sem superstições, porque livre da ditadura de qualquer deus, de qualquer pensamento metafísico. Um mundo voltado para o belo: eis o ateísmo em plena vigência no pensamento humano. Pode-se ser ateu e ser de direita ou de esquerda, em termos de política. Pode-se ser ateu e ser um bom ou mau ser humano. Pode-se ser ateu e, ao mesmo tempo, um ladrão ou uma pessoa honesta. É claro que a escolha ética de princípios opostos aos vigentes na sociedade não tem nada a ver com o pensamento ateu. Acredito, apenas, que não haverá mais desculpas deístas para o assassínio, para os atos de covardia contra os demais seres humanos. Então, o ateu que cometer atos contra a vida terá contra si apenas sua consciência, que deverá, pelo menos em tese, ser muito mais pesada do que a do deísta. Porque ele sabe que tirou uma vida para sempre, que não haverá perdão divino ou outra oportunidade para a vítima, como costumam raciocinar ou imaginar os deístas para aplacar suas culpas. O ateísmo de estado, repito, nada tem a ver com o verdadeiro ateísmo. Qualquer sistema político que condicionar sua existência ao ateísmo está definitivamente equivocado. Aliás, qualquer grupamento humano – seja político, social ou de qualquer outra natureza – que condicionar sua existência ao ateísmo também está definitivamente equivocado. Não pode e não deve haver sociedades ateias ou de ateus. Não em termos de constituição legal. Podem os ateus até mesmo se encontrar para trocar ideias ou se conhecerem, mas mesmos esses encontros correm o risco de se transformarem em movimentos ou escolas ou sociedades e, assim, colocar em risco a própria existência do ateísmo. No fundo, o que eu quero dizer é que o ateísmo é a condição natural do ser humano e não o deísmo, como se propala há tantos milênios. O ser humano natural é, por princípio, ateu. O deísmo nasceu depois, como resultado de contingências históricas e de formação equivocada do pensamento metafísico. Portanto, não há como pregar o ateísmo. Não há como defender o ateísmo. Não há como transformar um deísta em ateu pela simples pregação do ateísmo. Um deísta só se torna ateu, quando for convencido de que não há nenhuma possibilidade de que exista um criador e, para isso, ele precisa se convencer de coisas tão complexas quanto a complexidade do universo e de coisas tão simples quanto o fato de que ele não precisa crer em deus para sua vida continuar do mesmo modo como vem sendo levada. Convencer o ser humano de que ele não precisa de deus não é uma tarefa fácil nem deve ser tentada quando o deísmo enraizado se manifesta em forma de crenças ingênuas e de superstições absurdas, próprias de pessoas que não se preocupam com esse tipo de pensamento e acham que basta crer em deus e levar a vida, que é tudo o que o ser humano precisa para obter algum tipo de recompensa após a morte. Também o medo da morte provoca o deísmo simplório da maioria e, então, é impossível qualquer tipo de diálogo. Se o ateísmo não é um complexo de filosofias e princípios, sua aceitação, no entanto, implica fazer o caminho de volta de todo o complexo filosófico deísta implantado na mente humana desde há muitos e muitos milhares de anos. E isso se torna bastante difícil para mentes acostumadas ao pensamento deísta, seja essa mente a de um ser humano comum, seja essa mente a de um cientista com a capacidade de raciocínio e de lógica, como alguns cientistas, que podem ser deístas, apesar de todo o seu conhecimento científico. O deísmo, apesar de conter em si uma complexa rede de princípios metafísicos, tem em si um princípio quase mágico em si mesmo, que leva os seres humanos a se acomodarem em sua própria natureza humana de medo e de incerteza: a fé. Essa palavrinha contém em si a maior invenção do sistema metafísico da crença em deus. Se, ao final de uma extensa argumentação contrária, um deísta, convencido pela lógica, não quer, no entanto, renunciar à sua situação de crente, ele encerra qualquer tipo de possibilidade de vir a se tornar ateu apelando para a questão da fé. E ponto final. Nada mais pode demovê-lo do contrário. A fé remove montanhas. Pelo menos para aquele que acredita. E a capacidade humana de inventar e acreditar em suas invenções é infinitamente maior do que qualquer argumentação lógica. Por isso, um mundo ateu torna-se a utopia das utopias. Acredito que, um dia, em um momento muito distante no tempo e, talvez, no espaço, o ateísmo predominará sobre as superstições, mas nunca será hegemônico ou absoluto. Sempre haverá células metafísicas de resistência. E isso não será de todo mau. Bastará que as crenças absurdas e as superstições deístas regridam a níveis que impeçam que as religiões se tornem uma ameaça à integridade e ao princípio de liberdade da humanidade, para que o mundo se torne um pouco melhor. Embora, para que o mundo se torne melhor, não é necessário absolutamente que ele se transforme num mundo ateu. É exatamente o contrário: quando se tornar melhor, provavelmente será um mundo muito mais ateu do que é hoje.


sábado, 7 de agosto de 2021

055 - MÁQUINA FANTÁSTICA: O CÉREBRO HUMANO

  

(Josef Thorak (1889-1952): Buste de Friedrich Nietzsche - 1944)


Nenhum deus substitui a grandeza do ser humano. No entanto, essa grandeza refere-se muito mais à capacidade humana de criar, raciocinar e modificar a natureza do que, propriamente, à sua história. Há ainda muito do animal predador no inconsciente humano. Matar ainda é algo normal, para a humanidade. As crenças deístas apenas acentuam esse lado monstruoso do ser humano e fazem que ele desculpe seus atos com a vida após a morte ou o perdão de um deus carniceiro. A história humana está repleta de massacres e mortes inúteis, o que torna essa trajetória uma estrada sangrenta de assassínios e violência. E esse morticínio não tende a ter um fim, no curto prazo. Há um longo caminho a ser percorrido, antes que, finalmente liberto das influências deístas, a humanidade possa tomar consciência do valor real da vida. E do corpo, onde reside a máquina mais fantástica da natureza: o cérebro humano. Essa maravilha, cujos mistérios ainda vamos levar anos para desvendar, constitui o que de mais precioso existe em todo o universo conhecido. Preservar essa máquina e entendê-la será, juntamente com a genética, o passo mais formidável da ciência humana, capaz de colocar o ser humano em patamares científicos jamais imaginados. A ciência desenvolvida a partir desse conhecimento poderá gerar não apenas tecnologias avançadas que permitirão à humanidade domar novos patamares das forças da natureza, mas, principalmente, levá-la a repensar o conceito de existência, através de respostas a perguntas que a atormentam desde sempre: de onde viemos, o que somos e para onde vamos. E, então, o caminho para libertar-se das superstições deístas estará devidamente pavimentado à sua frente.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

054 - A EVOLUÇÃO GENÉTICA DO SER HUMANO

(Escultura de Liu Xue)


Já se usaram inúmeras metáforas para definir o ser humano e distingui-lo dos outros animais: o único animal que ri; o único animal que chora etc. Mas, na verdade, a única distinção realmente significativa entre o humano e seus parentes bichos, eu acredito, é aquela que diz que ele, o ser humano, é o único animal que pode evitar sua extinção. A história da evolução é clara: todos os seres vivos surgem, evoluem, modificam-se, adaptam-se ao meio, e depois entram em processo de extinção. O ser humano tem consciência disso e pode, até certo ponto, evitar ou prorrogar o seu processo de extinção. Assim como os animais, nós, os humanos, surgimos, evoluímos, modificamos nossas características e adaptamo-nos ao meio. Assim como os animais, surgem em todas as gerações “experimentos” genéticos que não dão resultado. São seres inadaptados, a que faltam certas características ou sobram aspectos ou órgãos; são seres que nascem “monstruosos”, com deformidades que provocavam espanto e admiração no passado e condenavam esses seres a viverem de sua “monstruosidade”, em circos e aparições públicas para derrisão do populacho ignorante. Ainda hoje, em pleno século XXI, ainda há pessoas que rejeitam com nojo o aparecimento desses seres, que nada mais são do que erros ou experiências da natureza, fruto de um processo aleatório de idas e vindas de nossos genes em busca da melhor adaptação. Não há monstruosidade nenhuma. São seres que merecem ou deviam merecer o mesmo respeito que qualquer outro que tenha nascido saudável, de acordo com as convenções vigentes. Na maioria das vezes, esses seres têm vida curta e, mesmo diante de toda a tecnologia disponível para tentar salvá-los, são como passarinhos que caem do ninho – tentamos prolongar-lhes a vida com alguns cuidados, mas eles quase sempre acabam morrendo prematuramente. Por outro lado, a evolução privilegia os seres mais bem adaptados, os mais “perfeitos” (dentro de um conceito bastante relativo de “perfeição”), e esses acabam prevalecendo, por algum tempo, até que também eles não tenham mais para onde evoluir e entram em processo de extinção. Os dinossauros são, provavelmente, o exemplo mais dramático desse tipo de evolução: tomaram o caminho errado, o crescimento exagerado, e a natureza não acompanhou a demanda de alimentos de que necessitavam e eles entraram em rápido processo de extinção, independentemente de qualquer catástrofe natural, como a propalada queda de um asteroide. Temos o maior respeito pelas baleias. São seres fantásticos. Mas a proliferação exagerada desses mamíferos marinhos pode levar à extinção inúmeras outras espécies de peixes, de que elas se alimentam, tendo como resultado sua própria extinção. Embora belos, são seres condenados pela ordem da natureza. Também o ser humano, se não obtiver uma clara noção de seu processo evolutivo (e temos essa noção: só não sabemos ainda o que fazer), poderá, dentro de alguns milhares de anos, tomar iniciativas que evitem a sua extinção, se a natureza não nos pregar uma peça como fez com os dinossauros e as baleias. No entanto, acredito que o conhecimento que se abre com o descobrimento da cadeia genética poderá tornar o ser humano o criador de seus caminhos, concluindo, afinal, que é ele, o ser humano, a criatura mais importante da natureza e só ele pode salvar essa mesma natureza e salvar a si mesmo.


domingo, 1 de agosto de 2021

053 - O PREÇO DA IGNORÂNCIA

(William-Adolphe Bouguereau,1825-1905,The Abduction of Psyche)



Pode parecer um tremendo exagero jogar na lata de lixo o conteúdo de uma civilização de mais de dois mil anos, e a sugestão, agora, parece-me impossível de ser concretizada. O erro já foi feito e temos que pagá-lo com o platonismo-metafísico-judaico-cristão como o caminho torto que a humanidade escolheu para o seu desenvolvimento intelectual. No entanto, minorar os efeitos nefastos dessa filosofia pode requerer um esforço inaudito de milhares de outros pensadores durante, pelo menos, mais dois mil anos. Já surgiram muitos críticos desse modo de pensar desde há alguns séculos. Sempre houve os dissidentes. No entanto, o esforço deles, até agora, tem sido inútil. Continuam proliferando crenças absurdas, as igrejas continuam mandando no mundo e escravizando a mente humana com ameaças absurdas e promessas infantis de uma vida impossível e improvável depois da morte, desde que se renuncie à vida. Parece que o século XXI, em termos de desenvolvimento intelectual, recuou para a Idade Média. Os novos conhecimentos científicos não chegam às massas, que continuam analfabetas e estúpidas, acreditando no primeiro charlatão que lhes faz promessas que lhes aliviem por um momento o sofrimento da ignorância ou da miséria absoluta em que vivem. O capitalismo, sistema econômico que se impõe ao mundo, não consegue resolver os aspectos mais comezinhos de distribuição de renda ou, pelo menos, de um arremedo de justiça social. Então, só resta ao povo a vida na ignorância e na pobreza, enquanto bilhões de dólares são gastos em pesquisa científica de ponta, em desenvolvimento de máquinas de guerra cada vez mais devastadoras, em guerras genocidas patrocinadas por superpotências que desejam perpetuar seu poderio, em políticas de exploração das nações menos desenvolvidas, em fábricas poluidoras e exploradoras de mão de obra vinda de países do terceiro mundo e, por isso, mais baratas, e em tornar cada vez mais rico aquele que já é rico e vive do sistema injusto de escravização dos outros povos. Não interessa aos senhores do mundo – governantes de países ricos e dirigentes das grandes religiões – que o povo se torne menos inculto. A ignorância e a miséria geram dividendos tão fabulosos para esses exploradores, que se justifica cada centavo gasto para manter essa máquina funcionando, num círculo vicioso que os enriquece cada vez mais quanto mais na pobreza e na ignorância viva o povo. Assim, jogar na lata do lixo da história os pensamentos de Platão e seus seguidores é, ao fim e ao cabo, desprezar um legado maldito, um legado que só contribuiu para o estado atual dos homens. Platão e seus asseclas, Cristo, Buda, Maomé e tantos outros, não fazem falta ao pensamento livre de uma humanidade mais livre e mais justa. Talvez, sem eles, também não alcancemos a felicidade, mas não se devem perseguir as utopias de que desejamos nos livrar. Sem eles, o caminho da humanidade, será muito menos penoso, mais verdadeiro, numa estrada sempre difícil e complexa que é a trajetória humana, mas uma humanidade livre de mentiras pode buscar conceitos e éticas mais próximas de um humanismo mais sadio, que valorize realmente a vida, o que, por si só, poderia contribuir para que um novo modelo econômico e social possa surgir em resposta a toda essa miséria e ignorância em que o ser humano vive mergulhado, apesar de todo o desenvolvimento científico que já adquiriu. Sou um entusiasta da ciência, não de todos os cientistas. Não vejo saída para a humanidade que não seja privilegiar o desenvolvimento científico, longe das amarras preconceituosas de credos religiosos. A ciência não precisa do código de ética da religião, para encontrar caminhos para resolver dilemas complexos da ética humana. Se não me entusiasmo com todos os cientistas, é justamente porque aqueles que pautam sua ciência por conceitos deístas quase sempre são os mais perigosos para a vida humana, porque seus paradigmas conceituais permanecem dentro do sistema platônico-metafísico de desvalorização da vida e crença em um deus ou em deuses misericordiosos que receberão em seus braços todos aqueles que morrerem como mártires de seus inventos destruidores. Esses não têm dó do ser humano. Pedirão perdão a seu deus e dormirão em paz com suas consciências, certos de que o seu deus lhes perdoará assim como aqueles a quem serviram de algozes, num reencontro no paraíso. Então, podem matar sem susto, podem desprezar a vida sem remorsos. A esses, sim, o meu desprezo, juntamente com todo o desprezo que dedico aos deístas. A verdadeira ciência, dedicada ao desenvolvimento humano, mesmo que cometa erros, sabe reconhecê-los e buscar novos caminhos. A verdadeira ciência, dedicada à valorização e melhoria da vida aqui na terra, conhece e estabelece os seus limites éticos, porque sabe que não há outra oportunidade, nem aqui, nem em outro mundo. Portanto, não irá contribuir para a destruição da vida, pois destruirá a si mesma. Ingenuidade? Para os deístas, sim, já que a eles não interessa o desenvolvimento científico, que prova a cada momento o equívoco de suas ideias e posições. Mas para a humanidade, será o caminho único, a via da redenção de milhares de anos de escravização a conceitos deletérios e vazios, de erros absurdos em nome de divindades inexistentes; será a maneira mais suave de se livrar para sempre do criador de um universo que, não tendo princípio nem fim, prescinde dessa crença que tornou o ser humano um seu escravo. E a humanidade, livre enfim, desse deus absurdo, passará a valorizar a vida e o mundo em que vive, sem exclusões de raça, pensamento, cultura, pronta, talvez, para ganhar outros planetas e espalhar a vida pelo universo e encontrar, quem sabe? – outras civilizações em futuros longínquos e conviver com elas sem necessidade de conquistá-las e escravizá-las por serem diferentes, como fez em todas as vezes que o cristão europeu se viu diante de povos estranhos a seus usos e costumes em todo o globo terrestre. Mais uma utopia? Com certeza. Mas não uma utopia platônica baseada na metafísica da exclusão que o pensamento platônico-judaico-cristão e também o de todas as outras religiões impõe aos sonhos e aos desejos da humanidade. Esse legado estúpido e o de todos os deísmos pode e deve ser jogado na lata de lixo da história ou colocado em destaque num futuro museu da estupidez humana, como exemplo de um caminho nebuloso por que se caminhou durante tanto tempo, e para que tal estupidez não seja repetida pelas gerações libertas, quando esse futuro chegar.


187 - PALAVRA FINAL: O ALÉM DO HOMEM

  (Vincent van Gogh) Tenho plena consciência de que tudo quanto eu escrevi até agora constitui um rio caudaloso, uma pororoca, sobre a qual ...