quinta-feira, 30 de setembro de 2021

072 - A ILUSÃO DOS MILAGRES

 

(Alexandre Evariste Fragonard –The Magician)


O que mais me impressiona, ao olhar para trás, para a história da humanidade, é perceber que o cristianismo tem apenas dois mil anos e as demais religiões hoje em voga não são muito mais antigas e muitas até mesmo bem mais recentes. No entanto, o ser humano existe sobre a Terra há centenas de milhares de anos. E durante todo esse tempo, não precisou do salvacionismo estúpido dos cristãos, tampouco das lições moralistas das demais religiões. E então, criam, principalmente a igreja romana, ilusões tremendas, como os tais milagres, e atribuem realizações que são obra apenas da natureza, do acaso ou das circunstâncias à ação de um deus obtuso que age através de santos estúpidos ou estupidificados pela fé inútil. Há, hoje, sobre a Terra, mais de sete bilhões de viventes. E quantos bilhões já viveram até agora? Um cálculo difícil de fazer. No entanto, um único milagre, realizado por um “beato” qualquer para um único indivíduo, torna-se motivo de comemoração e santificação. Por que escolheu deus esse indivíduo? O que tem ele melhor que os outros? Por que não curou ou salvou da morte bilhões de outros seres humanos? Por que só aquele mereceu a sua graça? São perguntas que não se fazem, porque as respostas serão todas evasivas e sem nenhum sentido. Não há explicação lógica, porque inventaram milhares de teorias para tentar explicar o inexplicável. A noção da existência de deus criou uma teogonia tão complexa, que já se gastaram infinitas desculpas e teorias para explicá-la. Tornou-se um emaranhado tão profuso de teses e ideias malucas, que ninguém, nenhum mortal, conseguirá mais deslindar tais mistérios. O fio de Ariadne perdeu-se, talvez para sempre. Não é mais possível tentar entender. Basta matar a ideia de deus na mente dos homens. Mas a palavra “basta”, aí, é apenas uma figura de retórica, um exagero que eu sei ser impossível de realizar a curto ou longo prazo, embora tenha a certeza de que um dia isso ocorrerá.


segunda-feira, 27 de setembro de 2021

071 - NÃO HÁ METAFÍSICA NO UNIVERSO

 

(Adrien-Jean Le Mayeur de Merpres)

Entre o tudo e o nada navega o universo. Não há metafísica nisso. Apenas o girar gélido dos planetas e dos sóis e dos milhões e milhões de corpos nas galáxias. O universo é apenas isto: forças em luta, movimento e tempo, vida e morte. Aliás, nem sei se se pode categorizar em vida e morte o que são apenas forças em movimento, movimento que constrói o tempo. O universo tem em si mesmo o poder da criação e da destruição e oscila entre esses dois polos num pêndulo que nossa capacidade de compreensão não alcança. Não há fim nem começo, mas o fim e o começo ocorrem ao mesmo tempo. E isso é a lei maior da vida ou o que chamamos de vida. Desde o átomo com elementos mínimos até as galáxias, as forças de criação e destruição se manifestam e operam para manter ora o equilíbrio ora o desequilíbrio, num eterno retorno de simultâneos fins e recomeços. Não há metafísica nisso. Não há metafísica no embate das forças do universo. O ser humano nasce, vive e morre dentro dessas forças que não entende e, possivelmente, não entenderá nunca. Sem deuses, sem almas, sem retornos. Apenas a vida a fluir nas veias como nas galáxias flui o tempo no movimento dos átomos e dos objetos estelares. Apenas o estar, para o universo; e o ser, para o ser humano. Sem nada a ligar um ao outro, senão a própria perspectiva de viver. O mundo é apenas isto que veem os nossos olhos ou percebem nossos sentidos e isso é muito mais do que pode pensar ou sonhar a imaginação humana. Então, por que não olhar apenas o mundo e parar de inventar o além? Por que não apenas o que já existe e que já é tão maravilhoso? Será que os humanos não percebem que, inventando mundos, criando o além, eles perde o contato com o mundo verdadeiro e, assim, perdem o contato com a própria vida? Vã e inútil toda a filosofia humana que criou a metafísica para afastar o ser humano de si mesmo. Ao criar o criador, os humanos deixaram de criar e recriar a si mesmos. Ao acreditar em vidas além da vida, em almas e espíritos, em deuses e anjos, em categorias abstratas de seres que nos comandam de um impossível outro mundo, o ser humano está perdendo o próprio espetáculo da vida, deixando de entender a natureza e a si mesmo. Muito tempo foi e está sendo perdido com as crenças absurdas de mundos abstratos. O basta a tudo isso, a essa estúpida metafísica, é que tornará o ser humano mais humano e não o contrário. É preciso reinventar crenças e destruir a fé que cega e obscurece. Crer deve ser apenas o ato de acreditar-se vivo e parte indivisível da natureza, nada mais. Um altar é só uma pedra sobre a outra ou pedaços mal-arranjados de madeira podre para sustentar deuses absurdos. O deus precisou inventar a fé para sobreviver no imaginário humano. E a fé está destruindo o ser humano. Destruamos a fé e nada restará do mundo podre desses deuses. Destruamos a ingenuidade humana e coloquemos em seu lugar a crença na vida, o respeito à natureza, a integração ao universo e estaremos restaurando a verdade e a vida: com a verdade, um novo ser humano; com a vida, um novo modo de encarar a existência. E então, nós, o humanos, diante da verdade e da vida, seremos seres livres para cumprir com dignidade a nossa existência. Sem metafísicas, deuses, sem crenças absurdas, absurdamente livres, afinal.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

070 - SUPERAÇÃO DA METAFÍSICA

(Laura Knight) 


Sento-me sobre a areia, na praia deserta. O movimento do mar atrai meus olhos e tudo em volta me dá plena noção da beleza do universo, desse mundo em que eu moro, feito de átomos, de substâncias concretas, em que terra, água, ar, plantas, peixes, animais, seres vivos e seres inanimados convivem numa pretensa harmonia. Se sou um místico ou um metafísico idiota, pensarei num criador de todas essas maravilhas que ele – o tal criador – colocou à minha disposição. Então, com os olhos marejados, empreendo uma prece a esse deus, agradecendo-lhe por estar vivo, por poder desfrutar com meus sentidos de todas essas maravilhas. O sol gira em torno de mim e eu sou o rei desse universo, criatura poderosa de um deus magnânimo, cuja energia percorre o meu corpo e me faz vibrar em uníssono com a natureza. Vejo e sinto que a harmonia que a natureza me revela provém desse deus a quem devo satisfação por todos os meus pensamentos, a quem devo pedir perdão por meus pecados. E então, como um choque de realidade, lembro que há apenas uma semana (hoje são dois de janeiro de 2005), um maremoto no distante Oceano Índico provocou ondas gigantescas (tsunami) e matou mais de cento e cinquenta mil pessoas (o número preciso de mortos talvez nunca seja conhecido). Olho mais uma vez o mar que vai e volta em ondas calmas e, se for, agora, o cético que eu sou, saberei que não há harmonia nenhuma na natureza e, sim, um equilíbrio trágico de forças que se agrupam, se ajudam e se opõem, numa cadeia que nada tem de mágica ou de harmoniosa, apenas e tão somente equilíbrio. E que não há nenhum deus, nenhum ser metafísico ou criador; que a natureza segue sendo apenas forças que se combinam para criar tudo o que estou vendo e que a natureza não tem bondade nem beleza, tem apenas a si mesma e que todo conceito de beleza está dentro de meus olhos de homem condicionado a ver beleza onde apenas há a natureza; e onde há natureza, tudo é o que é, sem fealdades e sem quaisquer outros adjetivos. Nós, os humanos, criamos os adjetivos para uma natureza que é só substantiva, que não se preocupa com nada além do seu próprio existir. E cometo uma impropriedade em usar o verbo “preocupar-se”, mas sinto que nosso sistema de conhecimento, emparedado pela linguagem, está profundamente contaminado pelo aristotelismo, pela metafísica inútil. A natureza, na realidade, não tem “preocupação” alguma. Nós é que somos os preocupados em criar categorias, em imaginar coisas que não existem e acreditar nelas. Inventamos porque somos capazes de inventar, mas não precisamos acreditar em todas as invenções. Se num grão de areia há toda uma história e pode haver um microuniverso vivente, não temos razão, por isso, de imaginarmos que haja uma força criadora por trás de cada movimento da onda, de cada oscilação no eixo da terra, ou que há um destino a que nossos passos na terra estejam condenados. A imagética humana destrói toda e qualquer possibilidade de compreensão dos fenômenos naturais e atrasa a mente humana na compreensão de si mesma. Se olho o mar e vejo apenas o mar, nada mais que o movimento provocado por ventos e outras forças naturais, isso não quer dizer que não veja poesia e beleza nesse incessante vaivém. Mas devo estar bem consciente de que essa poesia, essa beleza, são categorias criadas por mim para melhor apreciar, com meu juízo extremamente limitado, algo que existe, algo que pode estar muito além da minha compreensão e com o qual compartilho minha existência. O poeta não precisa ser metafísico para experimentar a sensação da beleza, o sentimento da poesia: basta olhar a natureza como ela é para sentir em si o que se pode chamar espetáculo da existência e considerar esse espetáculo a própria razão de existirmos e podermos contemplá-lo, sem necessidade de recorrer a pensamentos mágicos que, por serem mágicos, são absolutamente inúteis. A liberdade da mente humana está condicionada à superação da metafísica. Somente quando a nossa mente deixar de nos pregar peças que nos levem a uma interpretação mágica da natureza, é que conseguiremos adquirir um estado de consciência plena de nossos reais poderes como seres humanos e, então, guiados apenas pela racionalidade, deixaremos de nos odiar por motivos estúpidos como os conceitos de raça, de religião, de nacionalidade, ou como diferenças de usos e costumes, de cor da pele ou qualquer outra bobagem que categoriza e divide o ser humano. A metafísica só criou, até agora, superstições absurdas que, por sua vez, geraram diferenças que geraram ódios que geram guerras, genocídios e assassinatos. O ser humano ainda vai derramar muito de seu sangue antes que essas superstições sejam superadas, mas essa superação é a única saída para a humanidade.


terça-feira, 21 de setembro de 2021

069 - RACIONALIDADE E METAFÍSICA

(Escultura de Javier Marín)



O que é, afinal, o ser humano? Dizer que é um animal racional é pura pretensão e, se examinarmos um pouco mais profundamente a natureza humana, não conseguiremos definir o que seja racional. Sabemos que ele pensa, mas não podemos afirmar a mesma coisa a respeito dos animais. No entanto, não creio que haja um ser vivo que não pense, a não ser que esse ser não possua cérebro, o que só acontece com algumas espécies invertebradas e microscópicas. Quando, no zoológico, vejo um hipopótamo, fico imaginando se, dentro daquele cérebro, pode haver pensamentos mais complexos do que a vã metafísica de Aristóteles. Então, não pode ser pela capacidade de raciocínio que nos diferenciamos dos animais, senão por algo mais sutil. A genética, ciência que promete dar a verdadeira dimensão do humano, talvez, algum dia, consiga encontrar no código genético do ser humano aquilo que o torna singular na natureza, provavelmente a incrível capacidade do cérebro humano de evoluir ou de se transformar ou de ser capaz de realizar operações tão complexas que ainda não temos conhecimento suficiente para desvendá-lo. Enquanto isso, convivemos com a tranquila e muito cômoda noção de racionalidade como aquilo que nos distingue no reino animal. Contesto, no entanto, essa racionalidade quando observo a quantidade de crenças absurdas e de superstições que povoam a mente humana, alimentadas por histórias sem pé nem cabeça, por teorias e filosofias que não resistem a meio minuto de raciocínio lógico. Jogar ao mar oferendas para Iemanjá pode ser apenas um gesto simbólico de respeito a um passado ancestral, mas acreditar piamente que isso possa trazer qualquer tipo de benefício mágico não pode ser considerado um ato lógico, senão uma refinada estupidez. No entanto, é o que vemos a cada ano, em datas específicas. E isso é apenas um exemplo de milhares de outras superstições que pessoas dotadas de inteligência e de cultura adotam como fuga da realidade. O pensamento mágico, o desejo de imortalidade, a crença em deuses e espíritos, a fé cega em doutrinas absurdas são o apanágio de nossa pretensa racionalidade. Também a destruição de outro ser humano é um ato absolutamente ilógico. No entanto, a cada minuto, assassinatos são cometidos e a vida humana – o bem mais precioso que o ser humano possui – é deslavadamente jogada no lixo, como coisa descartável. Tudo se recicla, na natureza, menos a vida. E o ser humano, que se diz racional, não percebe os absurdos que comete contra si mesmo. Podemos nos considerar racionais? Não, enquanto houver qualquer vestígio de metafísica na mente humana. Poder-se-ia argumentar que um mundo sem metafísica seria um mundo triste, materialista, sem poesia. Pois eu acho justamente o contrário. A metafísica, ao enganar e mentir, ao construir na mente humana um imenso castelo de dejetos, mata a cada minuto a beleza da vida, o incomensurável tesouro que temos a possibilidade de criar, quando conseguirmos enxergar a natureza, o mundo em que vivemos e tudo o que nos rodeia, com olhos de realidade, sem atribuir a cada ser uma dádiva divina, ou um lampejo de sobrenatural. O mundo sem metafísica é muito mais belo e espantosamente mais poético do que o mundo imaginário que criamos com nossas estúpidas elucubrações metafísicas. O ser humano não precisa de deuses, e devo repetir isso à exaustão, para que me compreendam. O ser humano não precisa de Aristóteles, nem de Cristo nem de Buda, nem de nenhum profeta ou mártir idiota que crie seitas e religiões e templos e sacrifícios para deuses idiotizados ou papas carcomidos pela falta de ética e de compreensão da vida, para dar lições de moral. Com a metafísica, mate-se também a moral estúpida dos preconceitos, do desrespeito e da derrisão que esses gurus, profetas, pastores ou seja o que for gostam de pregar para seus seguidores e, com isso, conseguem arrancar mais dinheiro para templos inúteis ou para sua vida nababesca de tiranos da consciência dos humanos que creem em suas homilias e em seus discursos recheados de metafísica e de deuses inexistentes.

sábado, 18 de setembro de 2021

068 - UTOPIA RACIAL HUMANA

(Tarsila do Amaral - operários)


A raça humana é una. Não há “raças humanas” ou sub-raças. O ser humano pertence à raça humana, como um cão pertence à raça animal. Entre os animais, sim, há sub-raças, subespécies. O conceito de raça pela cor da pele ou por outras características é resultado de conceituações absurdas e excludentes. Classifica-se para diferenciar, para excluir quando necessário, nos processos de sempre: por motivos religiosos, políticos, econômicos etc. Mas a raça humana não pode ser subdividida, porque não há base científica para isso: geneticamente, cada humano é diferente do outro, mas não há nada mais parecido um com outro do que cada homem ou cada mulher. Há povos negros, amarelos, brancos, loiros, morenos etc., frutos prováveis de separações regionais, de adaptações a climas diversos, mas a tendência futura, com a possibilidade cada vez maior de intercâmbio e aproximação, é que a raça humana diminua cada vez mais as diferenças e tenhamos, em longo prazo, características comuns a todos os povos. Possivelmente a miscigenação e a necessidade de união dos povos levarão à construção de uma cultura geral, de uma língua geral, de costumes gerais. Isso não quer dizer que não se devam – e, com certeza, tal fato ocorrerá – manter e conservar aspectos culturais, idiomáticos e de costumes de cada povo ou cada grupo social. Acredito que uma língua comum – como o esperanto, por exemplo – venha a ser adotada, mas cada povo possa conservar o seu idioma. Acredito que haverá um código comum de conduta nos relacionamentos, mas cada povo conservará suas festas, seus usos e costumes, sua música, suas danças, seu vestuário e culinária, seus gestos e modos de olhar e interpretar o mundo. A globalização esperada e desejada e, possivelmente, inevitável não deve ser a que irá destruir o patrimônio multicultural da humanidade, porque na diversidade reside a riqueza maior da humanidade. Um conceito único de humanidade não será empecilho para a imensa diversificação que caracteriza a cultura humana. Ao contrário, quanto mais globalizado o mundo, mais diferenças culturais surgirão e se aprofundarão, dentro de um respeito absoluto de cada grupo pelo outro. Será como uma lona de circo a cultura geral, globalizada, sob a qual convivam harmoniosamente milhares de grupos e subgrupos, numa troca constante de elementos que se tocam, se intercambiam, mas não se sobrepujam. Assim como um idioma comum, haverá, por exemplo, uma música comum, universal, de fácil aceitação por todos, mas haverá também milhares de ritmos especiais que manterão a sua pureza e terão lugar não só no gosto do grupo que a produz, mas em milhares de outros ouvidos que a apreciem pelo mundo afora. O respeito a essa diversidade constituirá o aspecto fundamental dessa utopia racial, a utopia da raça humana, ao mesmo tempo una e indivisível, vária e múltipla, funcionando de forma harmoniosa e distante da barbárie de preconceitos, de guerras absurdas e, principalmente, distante de deuses excludentes e vingadores.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

067 - POR UMA NOVA UTOPIA

(Yves Tanguy - January 5, 1900 – January 15, 1955)


As grandes revoluções, na verdade, ocorrem em laboratórios científicos, em institutos de pesquisas, em salas de aula das universidades que pregam uma nova forma de encarar a vida, nos grandes e pequenos agrupamentos humanos que buscam novas maneiras de convivência, na imaginação dos artistas que sonham novas fronteiras para a mente humana, enfim, as grandes revoluções estão no interior do próprio ser humano, na sua estranha e, às vezes, louca procura por novos paradigmas. Bem longe das missas e das pregações inúteis de pastores, aiatolás ou profetas. Bem longe de deuses. Os humanos do futuro deverão ser livres de tais amarras para poder discutir o que é melhor para si, sem interferências moralistas de sistemas rígidos de mandamentos inúteis. Acredito, sim, na capacidade do ser humano de ir além dos limites de crenças deístas castradoras. Mas, até que isso aconteça, há de lutar muito por uma nova ética de vida, de respeito à vida. Por uma nova ordem social que não determine por antecipação a existência de um ser humano de acordo com o estrato econômico em que ele nasceu. Uma nova ordem que defenestre para sempre o conceito de elites, sejam econômicas ou culturais, sejam de raça ou de direito “divino”. A ninguém deve ser dado ter predominância sobre o outro. Sobre todos, o predomínio da lei, da ordem e da justiça, igualitariamente distribuídos, sem a arrogância das atuais classes ditas dominantes. A nova utopia deve estar centrada na busca pela distribuição de bens e riquezas, de forma que a ninguém seja possível não ter o mesmo nível de oportunidade, independentemente do lugar em que nasceu ou de sua origem, de sua cor, de seu sexo e de suas escolhas. Aos governos, não mais relacionados a políticas de direita ou esquerda, categorias ultrapassadas por novas propostas de um socialismo mais justo, caberá apenas interferir o mínimo possível na vida do cidadão, garantindo a distribuição de bens básicos como assistência médico-hospitalar, educação, transporte, saneamento, segurança e justiça. Para isso, e somente para isso, serão pagos os impostos. Um estado que não oprima com seu tamanho e não tenha o direito de declarar guerra, de dispor da vida do cidadão, de estabelecer leis que não passem pelo crivo popular. Um estado mínimo, para o máximo de cidadania. Com leis que impeçam a discriminação por qualquer motivo e, principalmente, o acúmulo de riqueza por parte de poucos em detrimento dos demais. Enfim, um estado protetor, para uma sociedade igualitária, em que não haja diferenças sociais de qualquer ordem. Essa a nova utopia, sem dúvida nenhuma.

domingo, 12 de setembro de 2021

066 - O SER HUMANO NO RIO DA EVOLUÇÃO

 

(Doug Johnsonson)


Qual a saída para um novo mundo, mais justo ou, pelo menos, com uma distribuição mais equânime das riquezas que os mais miseráveis constroem e de que só os mais poderosos e mais ricos desfrutam? Não sei e talvez ninguém saiba. Confiar no rio da história, na ideia evolucionista da sociedade, pode ser temerário ou absurdo. Mas é uma crença. E é como eu vejo o transcorrer da vida através dos tempos. O que chamam de revolução, eu denomino processo. Ideias que embricam umas às outras, como elos de uma corrente. E evolução não quer dizer, simplesmente, a mudança de um estado pior para outro melhor: quer dizer, apenas, mudança, que pode redundar em experiências fracassadas, como acontece na evolução biológica. Os dinossauros foram uma experiência fracassada: organismos imensos, que necessitavam de milhares de calorias para sobreviver, colocavam em risco o equilíbrio ecológico. Por isso, não se adaptaram a novas circunstâncias de clima e condições da Terra e desapareceram. Não importa se a causa tenha sido um meteoro. Apenas não podiam sobreviver. E quantas outras espécies desapareceram, ao longo desses milhões de anos de vida? O ser humano também é uma experiência da natureza. Se não se adaptar, se não entrar em equilíbrio com as forças da natureza, também pode desaparecer. Ou evoluir para formas diferentes, ou adaptar-se a outros mundos, já que possui, como nenhuma outra espécie, a capacidade de criar e construir. São processos que surgem, hoje, com o desenvolvimento da ciência ou serão processos que surgirão em seguida, que em vão tentamos vislumbrar, mas que poderão se transformar na salvação da humanidade rumo a um futuro impossível de se prever. Está na ciência, sem dúvida nenhuma, uma das balizas da humanidade para garantir sua permanência no universo. E entendo como ciência a capacidade de interpretar a natureza e utilizar esse conhecimento em prol da melhoria das condições de vida. O ser humano não pode temer brincar de deus, porque é ele o seu próprio deus. De suas escolhas dependerá o caminho a ser trilhado. Se acertar, o futuro pode ser melhor, para a raça humana. Mas se as escolhas forem erradas, sua sobrevivência pode estar comprometida. Se acredito num rio da vida, num fluxo contínuo da história, pode parecer paradoxal que dê ao ser humano a capacidade de influir nesse rio. Mas é o que acontece. Dentro do caudal, há espécies que podem interferir nesse fluxo, alterar o seu rumo ou, até mesmo, fazê-lo cessar. E dentre essas espécies, situa-se o ser humano, que não está livre das leis naturais do fluxo. Sua capacidade de influir está limitada ao próprio fluxo. Se lutar contra a correnteza, pode naufragar. Então, sua capacidade de traçar caminhos está condicionada à ecologia, ao sistema maior. Não pode quebrar as correntes, como fizeram os dinossauros, mas, dentro do imenso caudal, buscar os veios, os caminhos, as trilhas que permitam a ele conviver melhor consigo mesmo e com a natureza, diminuindo as desigualdades, controlando a poluição e a superpopulação, vencendo as doenças e as epidemias, cuidando, enfim, de si mesmo e do ambiente em que vive. É esse conhecimento, mais profundo e mais sábio, que a ciência pode fornecer ao ser humano, para situá-lo dentro do universo, em harmonia com as forças da natureza, utilizando-se dessas forças para sua sobrevivência, sem agredi-las ou contrariá-las.


quinta-feira, 9 de setembro de 2021

065 - REVOLUÇÕES E RUPTURAS

 

(Adam-Frans van der Meulen - Cavalery in the Battle, 1657)


No terreno da política e da sociologia, as rupturas estão mortas. Se é que viveram algum dia. Até agora, as grandes revoluções humanas redundaram em grandes fiascos. Se contribuíram para um avanço significativo da história humana, essa contribuição situa-se muito mais no campo do fracasso do que no do sucesso. Todas as revoluções foram autofágicas e destruíram a si mesmas. Porque eram rupturas. E o ser humano, em sua trajetória fantástica, da irracionalidade animal à descoberta da ciência, o seu feito mais notável, não tem momentos de ruptura, mas de evolução, constante, fria, às vezes, mas sistemática, num plano natural e sub-reptício de pequenas tentativas e retornos, de experiências de sucessos e de fracassos. Por isso, as revoluções, como propostas de rupturas, fracassaram terrivelmente. Porque continham em si o germe da autofagia. Deixaram lições valiosas, sem dúvida. Deixaram preceitos e ideias que se aprofundaram e redundaram em novos conceitos e novas formas de encarar a vida, a história, a sociedade. Mas a um preço muito alto, ao ceifar milhares de vidas, por quase nada, já que esses mesmos conceitos e novas formas de encarar a vida, a história e a sociedade iriam surgir naturalmente ou já haviam surgido e se imporiam logicamente, no correr do rio da história. Ficaram, ao fim e ao cabo, como o gosto de ressaca após uma grande bebedeira, um gosto amargo de fracasso e nojo. Essa percepção pode parecer trágica na sua aparente ideologia da chamada direita, mas é o que podemos verificar ao longo da história. O que restou da Revolução Francesa, senão uma frase utópica – liberdade, igualdade, fraternidade? O que ficou da Revolução Russa, senão a impressão de que o socialismo terá de permanecer como utopia? O que temos ainda da Revolução Cultural de Mao, senão uma China cada vez mais disposta a sacrificar todo um ideário no altar do capitalismo da economia de mercado? Só a chamada Revolução Industrial não fracassou. Simplesmente porque não era uma ruptura, era uma Evolução, um processo que teve início no século XVIII e que ainda não terminou, nem terminará, porque o homem continua e continuará a descobrir e inventar novas tecnologias e novas relações de trabalho e novas relações sociais. Todas as grandes Revoluções fracassaram. Porque tentaram provocar rupturas. E a história humana – a despeito de qualquer questão ideológica – não se constrói com rupturas, com grandes fracionamentos. O socialismo poderá e deverá vencer, sim, como sistema econômico, mas nunca através de uma revolução, do rompimento dramático com o capitalismo, mas como consequência do esgotamento das forças capitalistas e como imposição lógica de uma sociedade que não pode ficar à mercê apenas das forças do mercado gerido por corporações predatórias. Não se pode construir uma nova sociedade ou um novo mundo – mais justo – sobre os escombros da sociedade anterior, por mais cruel e injusta que seja essa sociedade. E é isso o que propõem todas as revoluções, esquecidas de que do niilismo nunca nasceu qualquer possibilidade civilizatória. Destruir para reconstruir é o maior dos engodos dos revolucionários, de qualquer espécie. E disso se aproveitam as forças de direita, no seu conceito clássico de conservadorismo. A direita não teme as revoluções. Nunca as temeu. Porque sabe que a vitória delas é sempre uma vitória de Pirro. A direita, sempre que parece derrotada por uma revolução, recua, se esconde, espera e se fortalece, para voltar mais forte, depois que a ressaca joga os ideais revolucionários no lixo das questões imediatas de sobrevivência. Nenhum revolucionário que eu conheça na História soube lidar com as questões cotidianas de sobrevivência, principalmente porque há a necessidade de construir uma nova ordem sobre os escombros da ordem anterior. Os esforços para remover os escombros acabam por esgotar toda a força criativa de qualquer revolucionário. Assim, não é possível instituir a justiça no mundo sobre os escombros das corporações globalizadas, porque isso é pura ilusão. Porque a vida urge em necessidades imediatas de alimentação, de trabalho, de casa, de saneamento básico, que não podem ser satisfeitas se a infraestrutura básica foi destruída. Podem uivar todos os revolucionários e todos os que defendem rupturas, mas essa é a mais extrema, embora cruel, realidade.


segunda-feira, 6 de setembro de 2021

064 - DEMOCRACIA BRASILEIRA (SEGUNDA PARTE)

 

(Promulgação da Constituição de 1988)


A democracia brasileira – tão recente – já está carunchada. Por culpa dos políticos que aprovam as nossas leis. A Constituição de 1988 não foi ainda totalmente aplicada. Há lacunas por onde os legisladores inseriram leis que nos levam a um impasse políticos de grandes proporções. O presidente da república, para governar, precisa estabelecer acordos espúrios com partidos de aluguel, com legendas que só existem para obter verbas do fundo partidário e negociar minutos ou segundos de tempo no horário gratuito de propaganda eleitora. Seria necessário que a legislação eleitoral imponha limites a esses partidos. Não é possível haver trinta e tantas legendas, já que não é possível haver tantas ideologias políticas minimamente palatáveis ou de compreensão do eleitor. Talvez um máximo de cinco partidos sejam suficientes para abrigar todo o espectro ideológico-partidário, de forma clara e objetiva. Um segundo ponto é esse maldito estatuto da reeleição: não se promove a renovação das casas legislativas dos municípios, do estados, do Distrito Federal e da Federação, quando seus ocupantes se eternizam no cargo, à custa de favores a seus eleitores ou até mesmo por preguiça de muitas pessoas de buscar alternativas melhores para seu voto. Assim, o ideal é que a reeleição para cargos legislativos ocorra apenas uma vez. E que as eleições ocorressem de tal forma que a cada escrutínio se renovassem pelo menos 50% das cadeiras. Já no caso do poder executivo, o mandato poderia ser de cinco anos (ou talvez, seis), sem reeleição. E a data dessas eleições deveria ser coincidente, desde vereador e prefeito até à presidência da república. Não é, talvez, a melhor solução, mas poderia ser uma tentativa de aperfeiçoamento dos aspectos formais de nosso sistema político. Enquanto isso, através da educação política dos jovens e através da discussão com a sociedade de um rígido código de ética política, pode-se chegar a um sistema menos viciado do que o que temos hoje. E para isso podem contribuir não só os sociólogos, os filósofos, os professores em geral, mas principalmente os historiadores, com sua capacidade de resgatar o passado não como modelo do futuro ou como um conjunto de heroísmos entorpecedores da realidade, mas como exemplo do que um povo pode construir em prol de sua própria cidadania, quando realmente está disposto a lutar por seus direitos.


sexta-feira, 3 de setembro de 2021

063 - DEMOCRACIA BRASILEIRA (PRIMEIRA PARTE)



Veja-se o caso do Brasil. Foram poucos os presidentes eleitos, na nossa breve e conturbada história republicana, sobre os quais se possa afirmar que tenham sido, além de probos, verdadeiros representantes do povo que o escolheu. Ou foram representantes das oligarquias, muito bem municiados por financiamentos de fazendeiros, industriais e banqueiros, ou foram um total fiasco. Da história mais recente, podemos lembrar Jânio Quadros e Collor de Melo. O primeiro, um farsante e ladrão contumaz. O segundo, um ladrão ainda mais contumaz e ainda mais farsante. Só diferem por ter sido mais esperto o primeiro, ao renunciar, e mais estúpido o segundo, ao pensar que poderia seguir enganando por muito tempo, com medidas tão absurdas quanto de impacto. As medidas de impacto, algumas delas até importantes, como a abertura do mercado brasileiro ao mundo, com um choque de realismo através da concorrência de produtos do exterior, o que obrigou muita gente que tinha reserva de mercado a se mexer para enfrentar os concorrentes, tinham por objetivo lançar uma nuvem de fumaça na imprensa e na opinião pública, para esconder os desmandos da caterva que tomara conta da capital federal. Governou dois anos e foi embora sob as vaias dos estudantes e do povo que o elegera. Durante o período militar, a república foi varrida para debaixo dos coturnos dos generais de plantão no palácio presidencial. Ao recuperar a capacidade de escolher, não se pode afirmar que o povo tenha sido sábio. Primeiro, elegeu um aproveitador, o já referido Collor. Depois, um enfunado e pavoneado sociólogo, que teve a oportunidade de, como representante, não mais das oligarquias, mas da chamada inteligência brasileira, iniciar uma verdadeira revolução na arte de governar, como exemplo até mesmo para toda a América Latina. No entanto, suas alianças com as forças mais conservadoras tornaram seu governo uma série de equívocos, cujas consequências poucos puderam perceber. Sob o tacão liberal, fez asneiras incomensuráveis, como sucatear o sistema de saúde e entregá-lo à iniciativa particular ou entender a educação como produto que o mercado pode regular através da concorrência e, com isso, permitir a abertura de centenas de faculdades e universidades que são verdadeiras arapucas para aqueles que não conseguem obter vaga no também sucateado e desnorteado sistema público de ensino. Vendeu por trinta dinheiros o patrimônio público e não se sabe até hoje onde foi parar o dinheiro da venda ou a economia obtida com ela. Depois, a experiência realmente mais radical, com a eleição de um metalúrgico sem curso superior, oriundo das camadas mais sofridas de nossa população. E nas costas de Lula se depositaram, pelo lado do povo, um excesso de esperança e, pelo lado das oligarquias, o desejo de que ele colocasse em prática, com medidas de impacto, todo o ideário esquerdizante que lhe atribuíram, durante sua trajetória política. No entanto, mais espertamente do que poderia imaginar qualquer cérebro mais maquiavélico das oligarquias, Lula não “chutou o balde”, para usar uma expressão de uso popular. Escaldado por experiências anteriores (e, nesse caso o desastroso governo de Collor de Mello foi, até certo ponto útil), Lula optou por uma política econômica conservadora em sua essência, para colocar o País num patamar de desenvolvimento sobre o qual ele possa, então, tentar impor medidas que privilegiem o povo que o elegeu. Em termos políticos, seu governo sofreu a perseguição ferrenha dos adversários da direita, incomodados com sua política social. Inventaram-se mil artimanhas para derrubá-lo, mas sua política social, que tirou da miséria milhões de brasileiros, acabou tornando-o um dos presidentes mais estimados da História, alçando o Brasil, em termos econômicos, ao posto de oitava economia do mundo, sendo admirado internacionalmente pelo seu combate à miséria e à fome. Escolheu como sucessora, depois de dois mandatos vitoriosos, a ministra Dilma Rousseff. Em quatro anos de governo, Dilma manteve a política econômica de seu antecessor e, principalmente, suas políticas sociais. Ao final de seu primeiro mandato, o país gozava de pleno emprego e começava a sair dos voos de galinha do desenvolvimento para realmente se tornar um país sem inflação e com índices econômicos sustentáveis, para se tornar realmente um país desenvolvido. No entanto, ao tentar um segundo mandato, a direita articulou um golpe dos mais sujos da história republicana: para interromper uma série inéditas de mandatos do Partido dos Trabalhadores, um complô canalha de empresários da indústria e do agronegócio, os golpistas pisaram no freio da economia e, em seis meses, os o País desandou. Mesmo assim, Dilma obteve um segundo mandato. No entanto, o golpe contra ela veio certeiro: as forças de direita, no Congresso, articularam seu impeachment e colocaram no poder um presidente franco e traidor, Michel Temer. Uma campanha sórdida contra os políticos do Partido dos Trabalhadores nas mídias oficiais, imprensa, rádio e televisão, e principalmente nas redes sociais inflamaram o povo contra Lula e seu candidato. E mais: inventaram uma sórdida “operação lava-jato” comandada por um juizeco mal intencionado de Curitiba, Sérgio Moro, que conseguiu prender Lula e desmoralizar totalmente seu partido ante a opinião pública, com acusações não provadas de corrupção. Estava em curso a segunda etapa do golpe: a eleição de um candidato da direita. Mas, quem acabou se elegendo foi o que se pode chamar de o lixo do “centrão” da Câmara (aquele grupo de deputados inúteis e vendidos a quem lhes acene com verbas e acordos espúrios): Jair Bolsonaro. Seu governo, até agora, dois anos depois, tem todos os sinais do mais completo desastre para o País, cujas instituições ele destrói dia a dia, com medidas absurdas. Além disso, a incompetência de seu governo ou desgoverno traz de volta a inflação, o aumento de preços, a miséria, enfim, do povo, num momento crucial da vida do planeta, assolado por uma pandemia que tem matado milhares de pessoas. Um governo calcado em negacionismo, que não conseguiu fazer o mínimo pelo povo e mais, tem conseguido até mesmo dificultar o combate à pandemia de coronavírus, ao deixar de comprar vacinas no mercado externo no momento certo, atrasando em meses o início da vacinação. Bolsonaro tem um histórico de crimes que o tornam um dos seres mais asquerosos que já governaram o Brasil, sua estupidez está causando uma tragédia ao País, que levaremos muitos anos para consertar todo o estrago que ele provocou e está provocando. Somente com seu afastamento imediato é que se pode pensar em ter alguma esperança de que esse ano de 2021 termine com alguma possibilidade de se iniciar, com algum sucesso, uma nova escalada para tirar o país desse atoleiro. Mas, infelizmente, o cenário não permite qualquer análise otimista. Nosso sistema cameral ou bi-cameral de legislativo patina na eleição de uma maioria de indivíduos cujo compromisso público não ultrapassa a soleira de sua casa ou sua conta bancária. Engessados por interesses corporativos, oligárquicos e coronelistas, a Câmara e o Senado não respondem às demandas de um moderno sistema republicano de representação realmente popular, e só atendem realmente a seus interesses. Assim como articularam o golpe para derrubar Dilma Rousseff, agora não se mexem para derrubar um presidente corrupto, incompetente, negacionista, assassino, genocida que está destruindo o país.


187 - PALAVRA FINAL: O ALÉM DO HOMEM

  (Vincent van Gogh) Tenho plena consciência de que tudo quanto eu escrevi até agora constitui um rio caudaloso, uma pororoca, sobre a qual ...