segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

121 - A FÉ: COMBUSTÍVEL DO TERRORISMO

(Edvard Munch - o grito)



O medo. Esse o pior sentimento do ser humano. Impor o medo ao inimigo é ter o caminho aberto para a conquista. O mundo ocidental deste começo de milênio vive o pior dos medos: o terrorismo. E o medo se multiplica porque o terrorismo explode numa forma nunca antes conhecida: tem por combustível o fanatismo religioso e age através do suicídio de homens-bomba que se explodem para atingir pessoas inocentes. Também o medo fez que as guerras se tornassem cada vez mais cruéis. Cada vez mais, as populações civis são afetadas pelas consequências bélicas. Cada vez mais, morrem inocentes, sejam velhos, mulheres ou crianças. A barbárie atinge graus de insustentabilidade cada vez mais altos, impedindo que o ser humano, acossado pelo medo, tenha qualquer possibilidade de se defender. As convenções todas foram deslocadas para a periferia das preocupações dos que nada têm a perder, a não ser a própria vida, cujo holocausto lhes servirá de passaporte para a salvação eterna ou para as delícias de um paraíso povoado de virgens que os esperam. O homem-bomba do final do século vinte e do princípio desse milênio tem muito mais sangue frio do que os kamikazes japoneses, cujos alvos e objetivo eram militares e estavam contextualizados num cenário bélico. Os homens-bomba que se explodem em filas de crianças à espera de doces ou dentro do metrô de uma grande cidade não têm outro objetivo que a salvação do mundo através da sua crença e da consequente imolação de vítimas inocentes. E, para ele, o mundo só pode ser salvo se temer e tremer diante do deus que lhe dá meios e força para o ato de imolar-se. Assim, não há como impedir que o homem-bomba acione o dispositivo que carrega em seu corpo. Porque não é possível identificá-lo. O processo de desumanização a que ele é submetido tem nuances imperceptíveis a seus amigos e parentes. Porque o fervor religioso que o acomete também acompanha aqueles que estão em volta. O grau de envolvimento com as redes terroristas, através da religião, não transparece em seus atos religiosos, porque o processo de convencimento e desumanização para que ele cometa o seu ato supremo segue meandros absolutamente racionais e congruentes, porque os mentores sabem muito bem o que desejam, ao contrário dos jovens recrutados para o serviço sujo de se explodir e deixar amedrontados um povo ou um continente. Esses têm somente o ideal absurdo de seguir em frente, sem pensar em filhos, pais, parentes ou amigos. Sua mente está corrompida pelo pior sistema de convencimento e empulhação que o homem inventou, nessa sua longa trajetória de cultivo de sistemas metafísicos: a fé. E a fé, como muito bem diz a bíblia cristã, remove montanhas e, por extensão, destrói vidas humanas inocentes.


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

120 - BARBÁRIE DO SER HUMANO MODERNO

 

(Edvard Munch - war)

Dentre as grandes nações que despontam nesse início de milênio, nenhuma pode se vangloriar de ser civilizada. São povos e nações que se projetam no cenário internacional com as asas do vampiro, prontas a pular no pescoço de vítimas incautas, ao menor sinal de que suas investidas podem dar certo. Não é à toa que o século vinte foi o século da matança. Nunca se matou tanto em toda a história da humanidade. E o século vinte e um segue pela mesma trilha de sangue. O ser humano ainda vê o diferente, o outro, como aquele que não tem alma e, por isso, deve ser destruído, por representar ameaça à sua condição de dotado por deus de uma missão qualquer. Há sempre um lado messiânico em toda guerra. E isto é o sinal mais claro de barbárie. Nas dobras da diplomacia moderna esconde-se o gesto de conquista, o gesto genocida de aniquilamento do outro. E quando há matanças gerais, ocorrem também matanças particulares. Se as nações matam, se os chefes risonhos das reportagens de televisão podem assinar o assassínio de milhares e milhares de pessoas e, com isso, ainda conquistar o apreço de seu povo e, até mesmo, de outros povos, por que o homem comum, aquele que se espelha nos poderosos, também não pode construir seus pequenos impérios do crime e decidir o destino de vários outros, como um arremedo de imperadores podres de países pseudocivilizados? Por que não podem também ser donos da vida do cônjuge aquele ou aquela que se julgam traídos? Por que não podem todos os imbecis ser donos da nossa vida e apontar para nossas cabeças suas armas assassinas simplesmente porque desejam o nosso relógio ou a nossa carteira com míseros tostões? A vida humana não vale absolutamente nada, tanto para os dirigentes das nações mais poderosas quanto para o assaltante de rua. E essa desvalorização da vida é reflexo de toda um sistema que se diz civilizado, mas que tem somente sofisticado os atos de barbárie de homens de todos os lugares do planeta. Buscamos, e devem até existir, pequenas ilhas de civilização, para que não decretemos o fim do ser humano, mas sabemos todos que, mesmo em países mais próximos do ideal de respeito humano, como os países nórdicos, o crime ainda persiste e o sangue humano de vez em quando (o que já é um alento esse de vez em quando) mancha indelevelmente o branco da neve. Os atos civilizacionais do ser humano, ou seja, aqueles que verdadeiramente trazem conquistas espetaculares, como as descobertas científicas, transformam-se muitas vezes em armas nas mãos dos bárbaros, que ainda são maioria e ainda governam a humanidade, com o fervor dos líderes de hordas medievais ou com o fervor de messias pré-cristãos ou, ainda, com o fervor deísta de destruição dos diferentes, do não reconhecimento de humanidade naqueles que se opõem aos seus desígnios. O fogo do inferno não se apaga nunca da memória dos deístas, pois é para lá que estão indo todos os opositores àquilo que eles chamam de civilização e eu chamo simplesmente de barbárie.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

119 - NÃO SOMOS O ÚLTIMO ELO DA EVOLUÇÃO

 

(The wrestlers: escultura do séc. III, a. desconhecido)


Não nos iludamos: há ainda um longo caminho a percorrer para superar os instintos primitivos e reacionários que convivem nos genes e no pensamento do ser humano. Além do mais, a evolução não segue como um rio calmo, nem suas águas se encontram todas no mesmo estágio. Enquanto há seres humanos (e não estou me referindo a tribos ou sociedades ou nações) que nascem com os instintos reacionários e primitivos mitigados, há muitos outros que ainda os têm em plena manifestação. E isso independe do grau de inteligência que possam ter os indivíduos. Há monstros inteligentes e sensíveis, enquanto há artistas com temperamento agressivo e assassino. A barbárie ainda tem, em larga escala, guarida no pensamento humano. Seja por motivos religiosos, políticos ou pessoais, mata-se muito e por qualquer razão ou sem razão nenhuma. Não conseguiu, ainda, o ser humano superar o instinto primitivo de matar, de destruir, de conquistar. Posso dizer, sem medo de errar, que são poucos, muito poucos, ou até mesmo quase impossível de se encontrarem, os seres humanos em que esteja ausente o primarismo, o reacionarismo ou a barbárie. Mesmo os que se apresentam como paradigmas do que se chama comumente bondade, reagem de forma irracional com maior ou menor potência às injustiças ou às ameaças. Os cristãos costumam ver na figura mítica de seu profeta o paradigma desse tipo de ser humano imune à barbárie, mas se esquecem de sua reação diante dos vendilhões do templo, o que é menos grave, ou de sua pregação de que serão excluídos do reino do céu todos os que não o seguirem, o que é muito mais grave, por construir uma doutrina de incluídos (os fiéis) contra os excluídos (os infiéis). A tolerância cristã vai até um certo limite, o do pecado. A partir daí, tolerância zero para os pecadores, para os blasfemadores e os hereges: queimarão todos no fogo do inferno ou agora ou no dia do juízo final. Portanto, não somos os seres que gostaríamos de ser. Não somos, de forma alguma, o último elo da evolução. E somente a possibilidade de construir um futuro mais digno para o ser humano permite que nossa imaginação nos leve a sonhos utópicos ou ao verdadeiro caminho de um mundo onde a guerra e a matança sejam a exceção e não a regra.


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

118 - CONSTRUÇÃO DO FUTURO

 

(Zdzisław Beksiński) 


Muitas foram as tentativas de definir o ser humano. Fazem sucesso. Mas, eu creio que, na verdade, o ser humano é o único animal que constrói o futuro. A racionalidade humana está em poder prever as consequências de suas ações, em primeiro lugar, e, depois, as mudanças da natureza. Tal possibilidade levou-o a desenvolver a imaginação. Com a imaginação, o ser humano sonhou e pôde, assim, conquistar o mundo e sobrepor-se aos demais seres vivos. Exemplifiquemos. Um pensamento primário: há polpa sob a casca do coco. Um pensamento de construção do futuro: se eu quebrar a casca, eu me alimento. Daí à descoberta de ferramentas que pudessem quebrar a casca do coco, há centenas ou milhares de anos. Mas a semente estava lançada. Outro: se o tigre tem fome, ele mata. A corça não percebe a fome do tigre, apenas sua presença ameaçadora. Quando o ser humano percebeu a fome do tigre, entendeu que ele caçava porque tinha fome e, assim, ele pôde defender-se melhor. Ou aproveitar-se dela para caçá-lo. Ou, ainda, dar-lhe o alimento, para evitar ser morto. Enfim, um pensamento de construção do futuro formou-se na mente do ser humano. A maioria absoluta dos animais não tem essa construção do futuro: são apenas reativos. Agem em consequência de seus instintos ou das forças da natureza. Talvez alguns primatas já tenham a centelha desse pensamento. Por isso, são tão próximos do humano. E essa capacidade de construir o futuro trouxe a imaginação, que é, depois da racionalidade, a mais poderosa arma da inteligência humana. Sem imaginação, o ser humano não teria podido tornar-se gregário e construir as civilizações que lhe dessem proteção. Quando falo em civilizações, estou-me referindo a qualquer tipo de construção coletiva do homem. O senso de coletividade tornou-se o elemento fundamental de sobrevivência humana. Sem a formação de sociedades que evoluíram para organizações complexas, desde a simples reunião para a caça e o preparo dos alimentos até a construção de palácios e pirâmides, o ser humano provavelmente teria desaparecido diante das mudanças de clima e das intempéries da natureza. Somente a capacidade de construir o futuro e, com o uso da imaginação, prevenir-se contra as ameaças, transformou o ser humano no ser que hoje habita o planeta soberanamente.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

117 - UNIVERSO ATRAVÉS DO DISCURSO

 

(Suzanna Schlemm)

A ideia da negação da realidade e sua troca pelo discurso podem levar a recaídas metafísicas. No entanto, não há metafísica na leitura ou na tentativa de leitura da realidade. Os sentidos humanos desvelam a porção de realidade que é possível desvelar, assim como certos animais só enxergam, por exemplo, em preto e branco e outros só apreendem o mundo que os rodeiam pelo cheiro etc. Não podemos afirmar que nossos cinco sentidos sejam suficientes para ler o mundo como ele realmente é, porque não dispomos de outras experiências. A essa leitura que nos foi dada pela natureza já estamos há milhares de anos acostumados e dela não temos condições de nos livrar. Porém, não há provas de que o que vemos é realmente a realidade, porque somos limitados aos sentidos e à subjetividade de nosso cérebro. Percebemos o que os nossos sentidos captam e o que o nosso cérebro interpreta. Pelas características genéticas comuns do homo sapiens, não há grandes distorções e interpretações entre aquilo que eu apreendo e o que as demais pessoas também apreendem: divergimos em detalhes, que correspondem, muitas vezes, ao ponto de vista e a determinados recortes da realidade. No mais, convergimos e concordamos em que, por exemplo, o que chamamos céu é azul ou que as folhas das árvores são verdes, por mais nuances que tenham. As noções adquiridas pelos sentidos e interpretadas por nosso cérebro seguem padrões que não permitem que julguemos ser isto bom ou ruim, apenas são o que são. Sem nenhuma metafísica, mas, por sua subjetividade e, por ter o ser humano a capacidade de imaginar e, mais do que isso, transformar em linguagem e discurso a sua imaginação, somos também capazes de nos enganar e de enganar os outros através de divagações metafísicas. Isso pode, até certo ponto, justificar os engodos em que nos metemos, mas qualquer justificativa cessa, quando analisamos de forma racional os discursos que contêm a semente e, às vezes, a árvore inteira, do pensamento inventado metafisicamente, propenso, portanto, a ser lido apenas com o sentimento, ou seja, com a nossa vontade de que aquilo se torne verdadeiro. E, como a vontade pode suplantar a racionalidade, acabamos por acreditar em contos da carochinha, apenas porque esses contos, transmitidos através de discursos bem elaborados, contêm o que se chama coerência interna, cerne da obra de arte que, por ser arte, dá apenas uma interpretação da realidade e não a realidade inteira. Aliás, a realidade inteira deve ser algo tão tremendamente abstrato que, provavelmente, não consigamos nunca alcançar a sua verdadeira dimensão. Nossa mente, mesmo que evolua a patamares até agora inimagináveis, não terá condições de interpretar o mundo em sua totalidade, porque o universo, em sua amplidão, não cabe na casca de noz de nosso pensamento, por mais complexo e elaborado que ele seja. Teremos de nos contentar, sempre, com o recorte possível que fazemos da realidade, para não nos tornarmos loucos ou insanos diante de sua grandeza. Assim, só nos resta, para que a realidade não nos fuja ou nos transporte para invenções absurdas, contentar-nos com o discurso e tirar dele todo o proveito de que somos capazes, para construir os enredos possíveis de nossa conexão com o universo que nos rodeia, ou melhor, com o universo de que fazemos parte.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

116 - LINGUAGEM E PARADIGMAS

 (Edouard Manet - Portrait-of-Emile-Zola)
 


A maior criação humana, sem dúvida nenhuma, é a linguagem. Mas, ao mesmo tempo em que é genial, a linguagem tem aprisionado o ser humano em paradigmas dos quais ele não consegue livrar-se. Se fosse deísta, diria que deus inventou a linguagem e o diabo, o discurso. Quero dizer: se a linguagem é a invenção mais do que fantástica, o discurso inventou o paradigma. E os elementos paradigmáticos do discurso tornaram-se mais importantes do que os próprios fatos. Ao transformar a visão de mundo em discurso, perdeu-se a objetividade. Ao perder a objetividade, enredando-se em discurso, este torna-se o próprio mundo que ele pretende descobrir e, no lugar da descoberta, surge a interpretação. Não mais somos capazes de descrever o universo, mas ganhamos a capacidade formidável de interpretá-lo e, ao interpretá-lo, criamos paradigmas sobre paradigmas, invenções sobre invenções. Assim, a história passa a ser não o relato do que aconteceu, mas cria os fatos a partir dos relatos e estes se tornam paradigmáticos. A famosa guerra de Troia: possivelmente uma briguinha de vizinhos – duas pequenas cidades a disputar alguma bobagem. Alguém, então, resolve raptar a mulher do inimigo. Para cobrar o desaforo, possivelmente algumas dezenas de homens armados resolvem sitiar a cidade dos ladrões. Será que esse cerco durou realmente dez anos? Ou foram dez anos de tentativas intermitentes? Quantos habitantes havia em Troia? Trinta mil? E quantos dispostos realmente a guerrear? E quantos, realmente, se predispuseram a ficar pelas imediações e, de vez em quando, fazer algum tipo de ataque a moradores da cidade, para dizer que estavam por ali, ou simplesmente pelo desejo de provocar e lutar? Enfim, a guerra de Troia chegou até nós através de uma narrativa épica, em que uma guerrinha particular ganha foros de tragédia universal. O relato do poeta, ou dos poetas, ou de quem estruturou e depois dos que aumentaram, ao longo do tempo, a narrativa, não deixa dúvidas: foi uma guerra de heróis, de deuses e de semideuses. Acreditamos nele, no autor ou nos autores. Afinal, a beleza dos versos e a grandeza da obra são testemunhos inequívocos de sua veracidade. No entanto, posso fazer de uma simples dor de cotovelo um poema de grandeza universal sobre o amor, que não necessariamente a mulher a quem dedico os versos seja a mais bela do mundo ou a mais nobre ou a mais digna. O que importa são as palavras, sua grandeza e variedade, o discurso bem articulado e construtor de uma pseudo-realidade. Porque, acabada a obra, posso seguir minha vida e nem me lembrar mais da musa que a inspirou, assim como o improvável Homero criou de uma guerrinha boba entre vizinhos uma epopeia digna dos deuses. E assim tem sido a história dos grandes feitos. Estão, quase todos, muito aquém da realidade, mas o discurso inventa batalhas, cria heróis e heroísmos, transforma o cotidiano em atos de glória, homens em deuses e nós, pobres leitores, em idiotas da fantasia de mentes fantásticas e originais. Preferimos a versão ao fato, as palavras à realidade, o discurso ao exercício duro da pesquisa. Afinal, os humanos precisam de paradigmas, de heróis e de deuses, assim como precisam da comida do dia a dia. O alimento da imaginação tem tanta importância quanto o alimento do corpo. O discurso nos aprisiona e nos revela, ao mesmo tempo: seres que se enganam o tempo todo e, pior, seres que adoram ser enganados, além de enganar. Por isso, a linguagem, essa criação fantástica, transformou o ser humano em prisioneiro de paradigmas e de invencionices mágicas que ele criou para substituir, com grande vantagem, o prosaico mundo de realidades em que vivemos. Assim, dando asas à imaginação, inventamos a arte e, através dela, a nossa civilização tem sido menos triste do que devia ser. E não há metafísica nesse pensamento, apenas discurso que, por ser livre e inventivo, constrói mais um paradigma.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

115 - CAPACIDADE CRIATIVA DO SER HUMANO

 

(Valquíria Cavalcante)


A ciência ainda tem poucas respostas, mas as religiões não têm nenhuma. Tampouco considero a ciência a dona da verdade. Aliás, não há verdade, principalmente a verdade absoluta pregada pelas religiões. Mesmo a metafísica, essa forma de pensar cheia de absurdidades, pode oferecer algum alento e algumas respostas para algumas pessoas. Ainda que eu acredite não serem as melhores respostas. Isso não importa. O que realmente se torna fundamental para uma nova maneira de pensar é o criticismo, a possibilidade de colocar em xeque qualquer conjunto de verdades constituídas em cânone. O poder do ser humano está em duvidar de tudo, mesmo de seu antideísmo. Embora não haja nenhuma possibilidade da existência real de um deus supremo, criador de todas as coisas, essa forma de pensar estratificada na mente humana tem criado concepções que atendem às necessidades filosóficas de uma grande parte da humanidade. O repúdio ao deísmo de forma acrítica pode, até mesmo, fortalecê-lo. Por isso, pensar em deus ainda pode ser um exercício fundamental para os seres humanos durante muitos e muitos séculos. O receio maior que se pode ter, quando a ideia de deus for varrida da mente humana, é que ele busque substitutos muito mais terríveis do que a própria ideia de deus. Se a humanidade se voltar para o cientificismo absoluto, como substituto ideal da religião, podem os seres humanos cair nas mãos dos mesmos prestidigitadores e falseadores da realidade que teimam na pregação da existência de deus, com agravantes muito mais poderosos: o conhecimento e a tecnologia a seu serviço, para escravizar a mente humana e mantê-la na ignorância mais profunda, com pouquíssimas possibilidades de ressurgir, aí sim, de longos e tenebrosos tempos de trevas. O motivo dessa preocupação tem um nome: igualdade, ou melhor, a ausência de recursos que possibilitem a todos, ao mesmo tempo, alcançar o mesmo nível de conhecimento. Nem em termos teóricos, a nossa capacidade de projetar e planejar o futuro consegue ou conseguirá imaginar um mundo em que todas as diferenças sociais e econômicas tenham sido superadas. Mesmo que obtivéssemos de mentes absolutamente brilhantes no trato da economia, da sociologia e da política uma sociedade de bem estar total, mesmo que a genética tivesse conseguido assegurar qualidade total na concepção de novos seres humanos, mesmo que os filósofos e os educadores assegurassem a esse homem um código universal de ética, a obtenção desse aparente paraíso terá custado ao ser humano a perda de sua liberdade e, consequentemente, a possibilidade de cada um seguir a sua própria trajetória em busca do bem estar individual, o que levaria ao desmoronamento desse mundo de perfeição, por total falta de equilíbrio natural entre o ser humano e sua capacidade de buscar e sonhar e pela estagnação, pela impossibilidade de que a humanidade continuasse a sua trajetória de evolução e desenvolvimento. O desaparecimento da humanidade passaria a ser questão de tempo, ou haveria uma revolução contra esse estado e uma volta da barbárie, uma espécie de fantasma, de nuvem negra, que ronda a história humana e não se dissipará apenas com a construção de um mundo mais justo ou de uma utopia. O cientificismo cego não pode ser a opção à selvageria do deísmo. O conhecimento pode, sim, substituir parcialmente a ignorância que leva à metafísica, mas não pode impedir que o ser humano seja o ser sempre imperfeito em busca de um estágio mais elevado de consciência, de pensamento e de estrutura física. Há necessidade de se criarem novas formulações do pensamento abstrato, para que o sonho e a imaginação não criem outros monstros na mente humana. A aceitação da vida como ela é, sem os engodos deístas de sobrevivência, exigirá uma nova estrutura cerebral a ser construída ao longo de muitos séculos de evolução, o que implica um tempo de maturação que, hoje, nenhum filósofo da realidade terá condição de imaginar. No entanto, é essa a trajetória da humanidade, sem dúvida nenhuma, para a construção de um mundo mais justo, embora ainda imperfeito, com o auxílio da ciência e da tecnologia, sem que essas se transformem na ditadura da sapiência sobre os demais elementos constitutivos da psique humana, como os sonhos, a imaginação e a capacidade criativa.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

114 - SEXUALIDADE HUMANA

 

(Jindrich Styrsky - Majakowsky's jacket 1939)


Há apenas dois sexos: o masculino e o feminino. E muitas sexualidades. Os meios de comunicação e a modificação dos costumes escancaram uma realidade que ficara oculta ou restrita a pequenos grupos há muitos e muitos séculos: a variedade de manifestações sexuais entre os humanos. A homossexualidade, aos poucos, começa a abandonar o gueto de degeneração e ignomínia a que ficara relegado, para se constituir num segmento importante em várias sociedades. E no rastro da maior tolerância à homossexualidade, formas alternativas de realização sexual despontam em todos os níveis sociais, a demonstrar que a genética humana, responsável por tantas variedades, continua e continuará fazendo suas experimentações, como sempre. Os preconceitos persistem, como grandes muralhas a serem transpostas, mas há sinais claros de que, através da sutileza de cavalos de troia ou pela força de potentes aríetes, a cidadela começa a dar sinais de queda. A sociedade ainda se espanta com demonstrações diferentes da sexualidade, condenando-as como atentatórias à moral ou rotulando-as de exóticas, mas não pode mais deixar de reconhecer sua existência. O diferente sempre provocou reações, ou de indiferença e afastamento ou de ódio e violência. Quando os espanhóis chegaram ao México, o estranhamento entre as duas civilizações levou o exército de Cortez a cometer um dos maiores massacres da história humana, em nome de uma pretensa superioridade da civilização europeia cristã. E assim foi em todas as guerras de conquista: o estranhamento quase sempre levava a guerras e à escravidão do mais desprotegido. A neurose em relação à invasão da Terra por seres interplanetários povoou e povoa a imaginação de escritores, cineastas etc. de seres monstruosos, todos prontos a devorar e destruir os pobres terráqueos. Instala-se, assim, na mente das pessoas, o medo pelo diferente. Também no terreno da sexualidade humana, o diferente apresenta-se como ameaça, como se o fato de dois seres se unirem de forma não convencional fosse fazer desmoronar a tal civilização cristã.


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

113 - O MITO DA BRUXA

 

(As bruxas de Salem, 1692; autoria não identificada)


O mito da bruxa serviu, e ainda serve de formas mais sutis, para perpetuar a noção de desigualdade entre os sexos, deixando a mulher à margem das grandes decisões da humanidade. Embora os avanços sejam significativos, a intolerância ainda tem fôlego para manter a mulher ignorante e distante de muitos poderes que os homens ainda reservam para si, até nas mais adiantadas sociedades desse início de terceiro milênio. O contra-argumento canalha do machismo constitui uma pérola derivada dos mais obtusos manuais de caça às bruxas: dizer que as mulheres não querem igualdade, mas lutam para ser superiores aos homens é, no mínimo, um desafio a qualquer princípio lógico que nem o mais ousado defensor do patriarcalismo terá vergonha de enunciar. A relação homem/mulher posta-se, assim, no terreno da desconfiança e da rivalidade, como se a ascensão do feminino fosse uma ameaça ao homem, assegurando, de forma sutil, mas vigorosa, a manutenção do machismo rancoroso, quando, na verdade, não há e não pode haver rivalidade entre os sexos que se complementam e lutam, ambos, por uma vida melhor neste planeta tão cheio de injustiças. As diferenças entre homens e mulheres, em termos genéticos e antropológicos, não constituem motivo para rivalidade, mas para complementação entre os sexos. A estupidez humana é que mantém níveis ou escalas de diferenças que escravizam a mulher ou colocam-na em situação inferior. Assim como não há raças entre os humanos, também não há relação de subordinação entre os sexos. Nessa desigualdade inventada pela mente diabólica de cristãos, no ocidente, e de deístas, no resto no mundo, vemos, de forma clara e cabal, mais uma manifestação da barbárie humana. Que precisa ser combatida em todas as frentes.

187 - PALAVRA FINAL: O ALÉM DO HOMEM

  (Vincent van Gogh) Tenho plena consciência de que tudo quanto eu escrevi até agora constitui um rio caudaloso, uma pororoca, sobre a qual ...