sábado, 12 de fevereiro de 2022

116 - LINGUAGEM E PARADIGMAS

 (Edouard Manet - Portrait-of-Emile-Zola)
 


A maior criação humana, sem dúvida nenhuma, é a linguagem. Mas, ao mesmo tempo em que é genial, a linguagem tem aprisionado o ser humano em paradigmas dos quais ele não consegue livrar-se. Se fosse deísta, diria que deus inventou a linguagem e o diabo, o discurso. Quero dizer: se a linguagem é a invenção mais do que fantástica, o discurso inventou o paradigma. E os elementos paradigmáticos do discurso tornaram-se mais importantes do que os próprios fatos. Ao transformar a visão de mundo em discurso, perdeu-se a objetividade. Ao perder a objetividade, enredando-se em discurso, este torna-se o próprio mundo que ele pretende descobrir e, no lugar da descoberta, surge a interpretação. Não mais somos capazes de descrever o universo, mas ganhamos a capacidade formidável de interpretá-lo e, ao interpretá-lo, criamos paradigmas sobre paradigmas, invenções sobre invenções. Assim, a história passa a ser não o relato do que aconteceu, mas cria os fatos a partir dos relatos e estes se tornam paradigmáticos. A famosa guerra de Troia: possivelmente uma briguinha de vizinhos – duas pequenas cidades a disputar alguma bobagem. Alguém, então, resolve raptar a mulher do inimigo. Para cobrar o desaforo, possivelmente algumas dezenas de homens armados resolvem sitiar a cidade dos ladrões. Será que esse cerco durou realmente dez anos? Ou foram dez anos de tentativas intermitentes? Quantos habitantes havia em Troia? Trinta mil? E quantos dispostos realmente a guerrear? E quantos, realmente, se predispuseram a ficar pelas imediações e, de vez em quando, fazer algum tipo de ataque a moradores da cidade, para dizer que estavam por ali, ou simplesmente pelo desejo de provocar e lutar? Enfim, a guerra de Troia chegou até nós através de uma narrativa épica, em que uma guerrinha particular ganha foros de tragédia universal. O relato do poeta, ou dos poetas, ou de quem estruturou e depois dos que aumentaram, ao longo do tempo, a narrativa, não deixa dúvidas: foi uma guerra de heróis, de deuses e de semideuses. Acreditamos nele, no autor ou nos autores. Afinal, a beleza dos versos e a grandeza da obra são testemunhos inequívocos de sua veracidade. No entanto, posso fazer de uma simples dor de cotovelo um poema de grandeza universal sobre o amor, que não necessariamente a mulher a quem dedico os versos seja a mais bela do mundo ou a mais nobre ou a mais digna. O que importa são as palavras, sua grandeza e variedade, o discurso bem articulado e construtor de uma pseudo-realidade. Porque, acabada a obra, posso seguir minha vida e nem me lembrar mais da musa que a inspirou, assim como o improvável Homero criou de uma guerrinha boba entre vizinhos uma epopeia digna dos deuses. E assim tem sido a história dos grandes feitos. Estão, quase todos, muito aquém da realidade, mas o discurso inventa batalhas, cria heróis e heroísmos, transforma o cotidiano em atos de glória, homens em deuses e nós, pobres leitores, em idiotas da fantasia de mentes fantásticas e originais. Preferimos a versão ao fato, as palavras à realidade, o discurso ao exercício duro da pesquisa. Afinal, os humanos precisam de paradigmas, de heróis e de deuses, assim como precisam da comida do dia a dia. O alimento da imaginação tem tanta importância quanto o alimento do corpo. O discurso nos aprisiona e nos revela, ao mesmo tempo: seres que se enganam o tempo todo e, pior, seres que adoram ser enganados, além de enganar. Por isso, a linguagem, essa criação fantástica, transformou o ser humano em prisioneiro de paradigmas e de invencionices mágicas que ele criou para substituir, com grande vantagem, o prosaico mundo de realidades em que vivemos. Assim, dando asas à imaginação, inventamos a arte e, através dela, a nossa civilização tem sido menos triste do que devia ser. E não há metafísica nesse pensamento, apenas discurso que, por ser livre e inventivo, constrói mais um paradigma.

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