terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

117 - UNIVERSO ATRAVÉS DO DISCURSO

 

(Suzanna Schlemm)

A ideia da negação da realidade e sua troca pelo discurso podem levar a recaídas metafísicas. No entanto, não há metafísica na leitura ou na tentativa de leitura da realidade. Os sentidos humanos desvelam a porção de realidade que é possível desvelar, assim como certos animais só enxergam, por exemplo, em preto e branco e outros só apreendem o mundo que os rodeiam pelo cheiro etc. Não podemos afirmar que nossos cinco sentidos sejam suficientes para ler o mundo como ele realmente é, porque não dispomos de outras experiências. A essa leitura que nos foi dada pela natureza já estamos há milhares de anos acostumados e dela não temos condições de nos livrar. Porém, não há provas de que o que vemos é realmente a realidade, porque somos limitados aos sentidos e à subjetividade de nosso cérebro. Percebemos o que os nossos sentidos captam e o que o nosso cérebro interpreta. Pelas características genéticas comuns do homo sapiens, não há grandes distorções e interpretações entre aquilo que eu apreendo e o que as demais pessoas também apreendem: divergimos em detalhes, que correspondem, muitas vezes, ao ponto de vista e a determinados recortes da realidade. No mais, convergimos e concordamos em que, por exemplo, o que chamamos céu é azul ou que as folhas das árvores são verdes, por mais nuances que tenham. As noções adquiridas pelos sentidos e interpretadas por nosso cérebro seguem padrões que não permitem que julguemos ser isto bom ou ruim, apenas são o que são. Sem nenhuma metafísica, mas, por sua subjetividade e, por ter o ser humano a capacidade de imaginar e, mais do que isso, transformar em linguagem e discurso a sua imaginação, somos também capazes de nos enganar e de enganar os outros através de divagações metafísicas. Isso pode, até certo ponto, justificar os engodos em que nos metemos, mas qualquer justificativa cessa, quando analisamos de forma racional os discursos que contêm a semente e, às vezes, a árvore inteira, do pensamento inventado metafisicamente, propenso, portanto, a ser lido apenas com o sentimento, ou seja, com a nossa vontade de que aquilo se torne verdadeiro. E, como a vontade pode suplantar a racionalidade, acabamos por acreditar em contos da carochinha, apenas porque esses contos, transmitidos através de discursos bem elaborados, contêm o que se chama coerência interna, cerne da obra de arte que, por ser arte, dá apenas uma interpretação da realidade e não a realidade inteira. Aliás, a realidade inteira deve ser algo tão tremendamente abstrato que, provavelmente, não consigamos nunca alcançar a sua verdadeira dimensão. Nossa mente, mesmo que evolua a patamares até agora inimagináveis, não terá condições de interpretar o mundo em sua totalidade, porque o universo, em sua amplidão, não cabe na casca de noz de nosso pensamento, por mais complexo e elaborado que ele seja. Teremos de nos contentar, sempre, com o recorte possível que fazemos da realidade, para não nos tornarmos loucos ou insanos diante de sua grandeza. Assim, só nos resta, para que a realidade não nos fuja ou nos transporte para invenções absurdas, contentar-nos com o discurso e tirar dele todo o proveito de que somos capazes, para construir os enredos possíveis de nossa conexão com o universo que nos rodeia, ou melhor, com o universo de que fazemos parte.

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