segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

112 - ADIAMENTO DO FEMININISMO

 

(Escultura de Sarah Bernhardt - 1844-1923 - Ophelia, 1880)


Não foi a queima de aproximadamente cem mil mulheres durante o período inquisitorial (do século XIII ao XVIII) que se constitui no fato mais horripilante da história da Igreja Católica Romana, mas sim o impedimento de que a burguesia então nascente pudesse trazer consigo o gérmen do feminismo numa sociedade que se transformava de agrária para citadina. No campo, embora já pipocassem movimentos feministas, as mulheres não deviam ter muitas condições para reivindicações, presas a afazeres domésticos mais pesados (no campo, ajudando os homens e em casa, nas lidas domésticas) e isoladas em pequenas aldeias. Nas cidades, a comunicação era mais fácil tanto quanto o acesso a meios mais poderosos de conhecimento, como os livros. Além disso, a divisão mais equânime das tarefas diárias, em que a mulher não tinha mais a responsabilidade da dupla jornada, podia constituir-se no cadinho ideal de ascensão feminina. Ferido profundamente em seu âmago pela instalação da ideia de que a mulher é responsável pela desgraça humana e pode ser mais facilmente enganada pelo demônio, o feminismo somente irá renascer com alguma força no século XX, agora sem fogueiras reais, em virtude do enfraquecimento momentâneo do catolicismo e também do luteranismo e do calvinismo. No entanto, as hostes conservadoras e fundamentalistas deram mais do que sinal de vida nas duas primeiras décadas do século XXI e só não acendem as antigas fogueiras em praças públicas porque os tempos mudaram e, portanto, é preciso mudar os métodos. Agora, os fundamentalistas cristãos perseguem as bruxas pelos meios mais sutis ou, às vezes, nem tanto, dos debates contra o direito do aborto, do uso de preservativos e métodos contraceptivos, da maternidade assistida e outros avanços da medicina que surgiram para dar condições à mulher de decidir o seu próprio destino e de tomar para si o cuidado com seu próprio corpo.


sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

111 - A MULHER COMO BRUXA

 

(Auto de fé - autoria não identificada)


 A condição feminina. Desde o momento em que o homem se descobriu agente da procriação, tanto quanto a mulher, a patriarcalização do mundo entrou num processo difícil de reverter. No ocidente, um grande passo para tornar a mulher um ser desprezível foram as invenções cristãs, já que a Bíblia, principalmente o novo testamento, não traz uma condenação cabal à mulher, como acontece, por exemplo, entre os seguidores do Alcorão, cujos preceitos, embora não condenem de forma absoluta a mulher, colocam-na claramente em posição de inferioridade em relação ao homem, com prescrições precisas do que ela pode ou não pode fazer ou usar. Por isso, o movimento contra o feminismo não partiu do cristianismo puro, mas principalmente daquele derivado do paulismo. O misógino Paulo de Tarso não se cansou de escrever diatribes contra as mulheres, aprofundando a culpa do pecado original através da explicação do nascimento de um Cristo sem gametas masculinos, concebido no útero de uma virgem por obra e graça de um espírito santo, o tal espírito de deus. Munição mais do que suficiente para definir a doutrina católica (e, depois, por extensão, de todo o cristianismo) de repúdio às mulheres, principalmente através de seus sábios de maior magnitude, como Agostinho, os quais, apoiados em ideias esdrúxulas do criacionismo masculino (um deus macho), pegaram a vassoura das bruxas medievais e varreram definitivamente o feminino para debaixo de seus altares, ou melhor, para dentro de suas fogueiras. Criaram o mito da bruxa que faz pacto com o diabo, apropriando-se da mitologia primitiva das mulheres curandeiras e parteiras, de civilizações que cultivavam a terra de acordo com ciclos da natureza, cujo conhecimento pertencia a essas mulheres privilegiadas. Quando os dois monstrinhos dominicanos, Kramer e Sprenger, codificaram todos os mitos relacionados às bruxas, no seu Malleus Maleficarum, considerado por muitos a continuação do Gênesis bíblico, eles também determinaram com certezas aristotélicas e agostinianas o campo de ação dessas bruxas e descreveram detalhadamente o modo como elas devem ser perseguidas, presas, julgadas e queimadas. Os dois padres dominicanos não deviam ter a noção precisa do objetivo da tarefa a que se propunham, mas, com certeza, a Igreja conhecia bem os desígnios que estavam por trás da caça às bruxas: deitar uma pá de cal na possível e provável pretensão feminina de alcançar algum tipo de posição que se aproxime da igualdade de direitos em relação aos homens, na hierarquia religiosa e, por extensão na sociedade pois, afinal, a Igreja era e ainda pretende ser a mandatária absoluta das mentes.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

110 - A RAÇA HUMANA

 

(Michael Lang - Urban Expressions)


Raça. Uma breve observação sobre raça. Acredito, e creio que o futuro o comprovará, principalmente através do aprofundamento dos estudos de genética, que não existem raças humanas, mas apenas seres humanos, ou, se preferir, a raça humana, diferente, mas não muito, das demais espécies animais. O que existe, na verdade, são homens e mulheres – seres humanos - que têm a cor da pele diferente e outras características físicas diferenciadas por fatores climáticos ou por desvios genéticos e isolamento geográfico, mas que, à medida que o mundo se torna menor, esses seres tenderão a se misturar em todo o planeta, fazendo desaparecer as diferenças ou, talvez, criando outras características diferenciadoras individuais, num verdadeiro arco-íris de cor de pele, de cor de olhos etc., etc., etc., que não terão nada a ver com as atuais. Portanto, falar em raça ou separar os seres humanos em raças, constitui mais um índice, um marcador, de nossa barbárie, algo que precisa ser eliminado da consciência humana.

sábado, 22 de janeiro de 2022

109 - O CULTO À MORTE E A BUSCA DA FELICIDADE

 

(Edvard Munch - death at the Helm - 1893)

O suicídio é a fuga para uma outra dimensão que não existe: a satisfação após a morte, o que resulta, pelo menos para a pessoa que se suicida, em solução, mas uma solução que contraria o princípio básico da vida: o próprio ato de viver. Morrer é natural. Matar e matar-se: constituem-se em atos extremos, condenáveis por si mesmos, em qualquer situação. No entanto, os instintos que trazemos de nosso passado e a fera que ainda mora na memória e na cadeia genética do ser humano ainda não foram amansados o suficiente para ultrapassarmos a condição bárbara de cometermos atos insanos. Nossa civilização foi criada e desenvolvida no culto à morte, fruto de milhares de anos de deísmo e culto a divindades abstratas, e isso é um complicador a mais na trajetória humana rumo a uma condição de superação da barbárie. Buscar a felicidade, como condição da vida humana, constitui-se num dos aspectos desse culto à morte. Ou seja, se não se alcança a felicidade em vida, essa virá após a morte, no seio de uma divindade ou num nirvana ou num paraíso absurdo. O que torna a vida humana uma trajetória absurda e o ser humano, um simples joguete nas mãos de um deus ou de um destino. Assim, a felicidade, como categoria absurda, invenção metafísica de filósofos deístas e ignorantes da real condição humana, torna-se, ironicamente, um elemento perturbador da própria satisfação humana, dificultando que o ser humano consiga ultrapassar o estado de barbárie em que ainda se encontra. Porque, muitas vezes, aquilo que se chama felicidade implica a desgraça e a assim chamada infelicidade de outro ou de muitos outros seres humanos. Justifica-se qualquer ato bárbaro pela busca de um estado inexistente e absurdo de satisfação absoluta, que se denomina felicidade.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

108 - DA INEXISTÊNCIA DA FELICIDADE

 

(Ada Breedveld)

 

Felicidade. Outra abstração que o platonismo deixou como herança da busca pela essência das coisas. Há toda uma mística envolvendo a ideia de felicidade, como se isso fosse algo que se devesse alcançar, uma meta colocada à frente do ser humano, geralmente muito à frente. Como quase todas as demais categorias abstratas da metafísica, essa também é um embuste à condição humana. A filosofia e as religiões sempre pregaram a busca da felicidade. Mais recentemente, a psicologia entrou na guerra. Então, decreta-se: o ser humano nasceu para ser feliz. Como uma missão a cuja renúncia compromete a própria existência. Por isso, um dos temas que mais preocupou o ser humano, a partir de um determinado momento da civilização, tem sido a felicidade. Então, pergunta-se: o homem pré-histórico também tinha essa preocupação? A resposta é muito simples: não, o homem primitivo não tinha essa preocupação, porque simplesmente ele gastava a vida vivendo. Como de resto todos os demais seres vivos da natureza. Só o homem moderno, isto é, o homem filosófico, que inventou as categorias abstratas da metafísica, possui preocupações que ultrapassam a existência. Pois é isto: preocupações que ultrapassam a existência. Esse o mal do homem filosófico. Busca sarna para se coçar. E, com isso, esquece a vida e se esquece de viver. O ser humano não nasceu para ser feliz, porque, simplesmente não existe algo que se possa denominar felicidade. O homem nasceu para viver e, durante a vida, satisfazer suas necessidades. A busca da felicidade é um valor burguês, inventado para levar o ser humano à busca de satisfações que ele não tem: consumo e emoções abundantes, isto é, além de sua capacidade de absorção. O estado natural do ser humano é a satisfação: quando algo desagradável ocorre, ficamos aborrecidos, entristecidos, podemos até desejar a morte, e muitos se suicidam. Não é a infelicidade que leva alguém ao suicídio, mas a insatisfação com situações específicas da vida, que comprometem nossa relação com o mundo. Bombardeado, no entanto, pela metafísica busca da felicidade, a frustração transforma-se em problema insolúvel e o obstáculo intransponível joga o desesperado na vala dos inadaptados, dos que não conseguem atingir o objetivo por que o ser humano existe e, então, só lhe resta renunciar àquilo que é o seu bem mais precioso – a vida – tendo como causa um outro estado absurdo, o de infelicidade. Porque, assim como não existe a felicidade, também não existe a infelicidade. A relação harmônica do ser humano com o mundo que o rodeia traz a sensação de prazer de viver e continuar vivendo. No entanto, a vida não é constituída apenas de relações harmônicas: ela exige dos humanos o vigor de enfrentamento, isto é, a vontade de viver para continuar vivendo, a vontade de ultrapassar os obstáculos que são inerentes à vida, para buscar novo estado de satisfação, através da acomodação dos aspectos negativos que possam trazer estados depressivos. E isso só se consegue com a compreensão de que a vida é o bem mais precioso e de que não há a menor possibilidade de compensações futuras para a perda da vida.

domingo, 16 de janeiro de 2022

107 - O AMOR METAFÍSICO E A BARBÁRIE

 

(Artemísia Gentileschi)


Desde que se decretou a busca da essência das coisas, o ser humano tem inventado categorias abstratas e acreditado nelas. Não que não existam certas categorias de abstração, isso seria impossível. Falo, no entanto, de verdadeiras entidades abstratas, tratadas como seres descolados da realidade. Por exemplo, o amor. Ninguém nega a existência do amor: parece algo que está acima de qualquer possibilidade de não existência. Está enraizado na mente humana de tal modo, que é usado como remédio universal para todas as mazelas humanas, placebo receitado para todo e qualquer momento da vida, como se o próprio ser humano dele dependesse. Qualquer pregador, qualquer falso profeta, qualquer idiota, enfim, todos, insistem e persistem na ideia de que é o amor o sentimento máximo do ser humano. Não estou falando, aqui, da categoria amor em relação à atração de um ser humano por outro, ou seja, o chamado amor individualizado, a afeição que une pessoas dentro de uma comunidade restrita, na codependência da vida diária, não importando se há componente sexual ou simplesmente afetivo. Refiro-me à grande categoria incrustada em expressões “só o amor constrói”, “amai a deus”, “amor ao próximo” etc., em que predomina a ideologia cristã de que é possível a existência de um amor absoluto, independente do objeto. Ao descolar o ato de amar do objeto, ou seja, ao chegar a estado de contemplação absoluta do ato de amar, o ser humano se idiotiza numa concepção de mundo etérea e abstrata, fora da realidade cotidiana, em que os atos de aproximação entre os seres humanos nada têm a ver com essa idealização metafísica do amor a qualquer preço, como se fosse possível, por exemplo, que a natureza tivesse atos de amor à matéria de que ela é feita. Não, positivamente, esse amor universal, estranho amor que leva facilmente ao ódio, não contempla a natureza. É absolutamente antinatural. O amor química, que se resume na aceitação do objeto amado específico, como entre dois seres que se aproximam e convivem entre si, por necessidades sociais ou porque foram gerados ou geraram outros seres, não guarda nenhuma relação com a idealização cristã de amor ao próximo. Não há que se amar a natureza, porque a natureza não tem amor. Não há que se amar ao próximo, porque o próximo não tem amor como nós pensamos que ele teria e ele pensa que nós temos. A antinaturalidade desse amor sem objeto definido está flagrante em todos os atos de vandalismo, de destruição e de assassinatos que o ser humano comete contra a natureza e contra si mesmo. Há que se buscar antídotos a essa concepção metafísica e absurda na ideia de respeito, de necessidade de convivência com forças contrárias, para que a humanidade sobreviva a si mesma e a seus atos de barbárie.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

106 - CONTRA TODAS AS METAFÍSICAS

 

(Thomas Bühler: Narrenschiff, a nau dos insensatos)

Barbárie. Uma mulher depõe na televisão que o pastor havia insistido em que ela pagasse o carnê de gideão para seu filho, mas ela não o fez e o filho sofreu um acidente e perdeu as duas pernas. Um pai põe para fora de casa a filha que se perdeu, ou seja, entregou-se ao namorado. O marido espanca a mulher porque bebeu demais. Filha mata pai e mãe, porque eles não concordavam com o seu namoro com um marginalzinho qualquer. Nas favelas da cidade do Rio de Janeiro, o tráfico impõe suas leis e mata repórter que fazia matéria sobre o seu poder. No Iraque, diariamente, os terroristas explodem bombas presas em seu corpo e matam, ferem e mutilam dezenas de pessoas. Isso porque um presidente americano destruiu a nação iraquiana para depor o tirano que governava o país com mão de ferro. Os exemplos vão do mais simples ato de racismo até as mais cruéis guerras de extermínio. E são todos exemplos de barbárie do ser humano contra o ser humano. Assim está a humanidade, neste começo do século XXI. Mata-se, tortura-se, fere-se, humilha-se com a mesma desfaçatez de alguns milhares de anos atrás. A evolução humana no quesito barbárie ainda está no começo. A ética que prevalece ainda é a da força bruta, da bestialidade. As concepções filosóficas e religiosas, sejam ocidentais ou orientais, continuam pregando a paz, o amor entre os humanos, a compaixão, mas o ser humano permanece o mesmo e, às vezes, tem-se a impressão de que piora a sua capacidade de destruir a si mesmo e a seu semelhante. Porque são éticas inúteis, não correspondem à realidade, não contribuíram em nada para a evolução humana, com suas metafísicas ordinárias, com seus deuses sanguinários, com suas prédicas que condenam ao fogo eterno aqueles que não comungam com suas cartilhas absurdas e estúpidas. Não há que ter complacência com esse tipo de filosofia. Não há que ter complacência com essas religiões idiotas e idiotizantes. Qualquer tentativa de aceitar como positivas tais crenças só faz perpetuar o estado de barbárie em que vive a humanidade sob o domínio das forças metafísicas que valorizam a morte e pregam a vida além-túmulo como solução para as mazelas e os tormentos do ser humano. São todas as metafísicas um mal que precisa ser combatido até ser erradicado da mente humana, embora se saiba que tal tarefa seja quase impossível. No entanto, assim como começaram do nada as inúteis buscas da essência dos seres, é necessário que se comece também a buscar a exata noção do valor da vida, para que o materialismo ateu e objetivo, crítico e lógico, venha a estabelecer o seu império no pensamento humano. Essa a utopia a que volto sempre, porque é preciso repeti-la sempre, à exaustão, como o fizeram os religiosos que construíram ao longo do tempo um edifício que é difícil, sim, de ser explodido, mas que não é impossível de ser lentamente demolido por uma posição radical contra todas as metafísicas.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

105 - NECESSIDADE DA ARTE

 

(Francisco Brennand - parque das esculturas)



O ser humano não é o pináculo da evolução. Deverá haver um além-do-homem, um ser mais complexo do que hoje somos. E mesmo esse ser não será o fim, a não ser que todo o universo entre em colapso e desapareça para ressurgir em novas formas de evolução. Porém, a compreensão da morte levará o ser humano a respeitar a vida, sob pena de destruir a si mesmo. E, em qualquer etapa evolutiva, os humanos precisarão da arte para se humanizar e se compreender. Sem ela, prevalecerá sempre a barbárie.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

104 - HUMANIZAÇÃO PELA ARTE

(Escultura de Giambologna: Rape of a Sabine) 


A capacidade de criação humaniza o ser humano. Mas não o livra da barbárie. O instinto animal, de defesa e ataque, de sobrevivência, de lutar e matar, continua presente no seu código genético. Modificá-lo levará ainda muito tempo. Enquanto isso, pode-se minimizar esse instinto através da arte. Só a arte pode conduzir o ser humano para a compreensão maior do que é ser realmente humano. Porque ele só compreende a si mesmo quando refletido no espelho da arte. Espelho onde se registram todas as notas da sinfonia complexa da existência. O pouco de vida que os humanos percebem deve-se à criação dos artistas de todas as épocas, esses seres de olhares perdidos no horizonte de si mesmos, obcecados pelas ideias demiúrgicas de busca de valores onde ainda há apenas esboços de ética. Quando o ser humano obtiver a verdadeira ética do respeito a si mesmo, ao outro e à natureza, não precisará mais da ética e os artistas talvez até rareiem ou desapareçam do convívio humano, mas terão cumprido a mais sublime missão, que é inculcar na mente dos humanos que é preciso eliminar os valores niilistas e negativos de vontade de morte ou de guerra. Mas a inexistência do artista num mundo utópico de paz e harmonia não significa sua expulsão do paraíso: apenas creio que todos os humanos se tornarão capazes da criação artística e não precisarão de profetas ou intérpretes para sentimentos e pensamentos que não mais se voltarão contra eles mesmos. No entanto, essa visão é, como já disse, utópica. A perfeição não parece pertencer à espécie humana, nem à natureza.


terça-feira, 4 de janeiro de 2022

103 - A ARTE

 

(Remedios Varo)


Os iluministas chegaram à conclusão de que a arte reflete a natureza. Sobre isso, muito já se falou. Contra ou a favor. Aprendi e ensinei sempre que, ao elaborar uma ficção (e, por extensão, qualquer outra forma de arte), construímos um mundo suprarreal, paralelo à realidade, com leis próprias e coerência interna. Esse mundo suprarreal é um espelho do mundo real, um espelho liso e claro ou rugoso e fosco ou, ainda, deformado por convexidades e concavidades ou por multiplicidade de faces, mas sempre um reflexo através do qual iniciamos a nossa busca pela identidade humana. Nele refletimos o que sabemos do ser humano, o que gostaríamos que ele fosse ou criticamos aquilo que vemos nele. Ou, até, mesmo, descobrimos ou tentamos descobrir o que o ser humano é. Nesse mundo, podemos tudo. Só não podemos contrariar suas leis internas de coerência e coesão. A arte, pois, reflete a natureza, sob uma óptica muito especial do artista, contemplando e buscando regiões obscuras ou pouco conhecidas do humano. O artista torna-se, assim, criador e demiurgo de sua criação. Mesmo que, às vezes, não tenha plena consciência disso.

sábado, 1 de janeiro de 2022

102 - EXISTO, LOGO PENSO


(Edvard Munch (1863-1944), Friedrich Nietzsche - 1906).


“Penso, logo existo”. A essa máxima, chegou Descartes por caminhos tortuosos. Ficou. Não há como refutá-la usando o mesmo raciocínio, apesar de eivada de metafísica. Mas a existência humana não está condicionada ao pensamento. Aliás, não existe o pensamento como entidade abstrata, como dádiva ou dom da natureza. O cartesianismo obscurece. Talvez devêssemos plagiá-lo e dizer: existo, logo penso. A existência precede o pensamento e não o contrário. O ser humano criado pela divindade sente inevitável vontade de se considerar o rei da criação. Por isso, pensa para existir. A arrogância humana só é comparável à arrogância de seus deuses. Uma é reflexo da outra, não importa a ordem. O pensamento é fruto de ligações químicas e elétricas processadas dentro de um organismo vivo, o mais perfeito da natureza, o cérebro. Isso, sim, é incontestável, dentro dos conhecimentos científicos até agora alcançados. Se o cérebro humano processa a linguagem, é porque desenvolveu áreas específicas para isso. Com a linguagem, o cérebro humano se aperfeiçoou, num processo de troca entre a possibilidade de falar e a possibilidade de processar o que se fala. A capacidade de falar desenvolveu ao infinito a capacidade de imaginar. Nada ou muito pouco sabemos sobre o funcionamento das sinapses cerebrais dos animais ditos irracionais. Aliás, também muito pouco ou quase nada sabemos do funcionamento de nosso cérebro. Só o que podemos deduzir, com muita possibilidade de acerto, é que eles, os animais ditos irracionais, também pensam, raciocinam e deduzem. E possivelmente, também imaginam. Mas só o ser humano levou ao limite a capacidade de transmitir através da linguagem o que se passa em seu pensamento. Aves que falam, como o papagaio, têm limitada capacidade de construir novas frases com o vocabulário que adquirem porque ficam restritas à narração do mundo exterior, não conseguem articular frases que nos permitam chegar ao seu pensamento. Já os humanos exteriorizam o que ocorre em seu processo mental, o que lhes permite uma gama infinita de novas relações, lógicas ou não. Pensar é um exercício químico ou, no mínimo, um esforço das nossas sinapses cerebrais. Não pensamos para existir. Existimos para pensar e sonhar e imaginar e construir novos pensamentos que nos permitem entender melhor a nós mesmos e ao mundo em que vivemos. Embora ainda estejamos mergulhados na metafísica inútil de sábios que levaram ao limite a sua imaginação e têm, com isso, influenciado negativamente a humanidade, contribuindo para a perpetuação de superstições e irrealidades construídas sobre uma base metafísica de que a natureza e os objetos naturais têm uma “alma” ou uma “essência”. Na busca desta essência, temos perdido tempo precioso para a construção de uma verdade filosófica natural e materialista, libertadora das trevas do deísmo em que está mergulhada a humanidade, apesar de todos os avanços científicos.

187 - PALAVRA FINAL: O ALÉM DO HOMEM

  (Vincent van Gogh) Tenho plena consciência de que tudo quanto eu escrevi até agora constitui um rio caudaloso, uma pororoca, sobre a qual ...