domingo, 16 de janeiro de 2022

107 - O AMOR METAFÍSICO E A BARBÁRIE

 

(Artemísia Gentileschi)


Desde que se decretou a busca da essência das coisas, o ser humano tem inventado categorias abstratas e acreditado nelas. Não que não existam certas categorias de abstração, isso seria impossível. Falo, no entanto, de verdadeiras entidades abstratas, tratadas como seres descolados da realidade. Por exemplo, o amor. Ninguém nega a existência do amor: parece algo que está acima de qualquer possibilidade de não existência. Está enraizado na mente humana de tal modo, que é usado como remédio universal para todas as mazelas humanas, placebo receitado para todo e qualquer momento da vida, como se o próprio ser humano dele dependesse. Qualquer pregador, qualquer falso profeta, qualquer idiota, enfim, todos, insistem e persistem na ideia de que é o amor o sentimento máximo do ser humano. Não estou falando, aqui, da categoria amor em relação à atração de um ser humano por outro, ou seja, o chamado amor individualizado, a afeição que une pessoas dentro de uma comunidade restrita, na codependência da vida diária, não importando se há componente sexual ou simplesmente afetivo. Refiro-me à grande categoria incrustada em expressões “só o amor constrói”, “amai a deus”, “amor ao próximo” etc., em que predomina a ideologia cristã de que é possível a existência de um amor absoluto, independente do objeto. Ao descolar o ato de amar do objeto, ou seja, ao chegar a estado de contemplação absoluta do ato de amar, o ser humano se idiotiza numa concepção de mundo etérea e abstrata, fora da realidade cotidiana, em que os atos de aproximação entre os seres humanos nada têm a ver com essa idealização metafísica do amor a qualquer preço, como se fosse possível, por exemplo, que a natureza tivesse atos de amor à matéria de que ela é feita. Não, positivamente, esse amor universal, estranho amor que leva facilmente ao ódio, não contempla a natureza. É absolutamente antinatural. O amor química, que se resume na aceitação do objeto amado específico, como entre dois seres que se aproximam e convivem entre si, por necessidades sociais ou porque foram gerados ou geraram outros seres, não guarda nenhuma relação com a idealização cristã de amor ao próximo. Não há que se amar a natureza, porque a natureza não tem amor. Não há que se amar ao próximo, porque o próximo não tem amor como nós pensamos que ele teria e ele pensa que nós temos. A antinaturalidade desse amor sem objeto definido está flagrante em todos os atos de vandalismo, de destruição e de assassinatos que o ser humano comete contra a natureza e contra si mesmo. Há que se buscar antídotos a essa concepção metafísica e absurda na ideia de respeito, de necessidade de convivência com forças contrárias, para que a humanidade sobreviva a si mesma e a seus atos de barbárie.

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