quinta-feira, 28 de abril de 2022

140 - OS PARTIDOS POLÍTICOS NA REPÚBLICA IDEAL

 

 (Ilya Repin - Reply of the Zaporozhian Cossacks)


A palavra república tem o significado que todos conhecem: coisa pública. O conceito de governo democrático passa, necessariamente, pela república. Ignoro e desprezo solenemente qualquer outro sistema que tenha por governo, de mentirinha ou não, algo parecido com reis, rainhas, príncipes etc. Ou governos que tenham por origem o dedo de deus, as teocracias. Nem monarquias nem teocracias, por mais que se disfarçam, podem ser consideradas representantes democráticas de governos republicanos. E governo republicano implica representação popular. Ou seja: participação direta do povo na escolha de seus representantes. Como os países são, em geral, populosos, a saída foi constituírem-se partidos políticos que teriam, teoricamente, o papel de escolher os representantes populares, através de listas de candidatos alinhados a princípios filosóficos e ideológicos do partido. Aí, no entanto, começou a encrenca. Os partidos políticos não representam o povo. Representam, no máximo, a si mesmos, ao se constituírem em ninhos de membros das elites que têm uma só preocupação: eleger-se e perpetuar-se no poder. Os tais princípios filosóficos e ideológicos foram para o brejo, submersos pela visão utilitarista do voto, do poder a qualquer custo. Tornaram-se organismos viciados e viciosos, de troca de favores, de balcão de barganha para negócios escusos com o único objetivo de conquistar o poder. Perderam o trem da história. Não servem para mais nada, no atual estágio de democracia republicana que tem por objetivo não o poder pelo poder, mas os interesses populares. Há muito, não representam mais esses interesses, perdidos em picuinhas e lutas internas e externas para ganharem a cada vez um naco do dinheiro público. Por isso, devem passar por uma reestruturação total e absoluta, para não serem expurgados definitivamente da vida republicana, o que seria um mal maior. Não se pode jogar a água da bacia com a criança dentro. Não vejo outra saída para os partidos políticos a não ser a completa remodelação desse modelo estagnado e esgotado, com uma nova visão que acabe com os políticos sem eliminar a arte política. Os partidos podem, e devem, ganhar uma nova missão e, com ela, mais importância. Desde que se transformem em usinas de concepções ideológicas da sociedade, de teorias, de projetos e de planos de governo, geridos por uma estrutura extremamente enxuta, dirigidos por homens que não tenham outro ideal que não seja servir à sociedade e aos interesses da comunidade. Idealistas que fundam e participam do partido, orientam suas diretrizes, fiscalizam o cumprimento dessas diretrizes pelos eleitos sob sua legenda, mas que nunca, em tempo algum, poderão ser votados ou escolhidos para qualquer cargo público. Partidos que possam, portanto, deter o poder de eleger, de definir rumos para uma sociedade, em consonância com essa sociedade, mas que não podem governar.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

139 - POR UMA REFORMA POLÍTICA RADICAL




(Camille Pissarro Le jardin-des-tuileries- gris-lumineux)



Como, então, se darão as eleições? Cerca de um ano antes de cada eleição, os cidadãos interessados em concorrer a qualquer cargo devem inscrever-se num dos partidos existentes, de acordo com suas convicções e preferências. Essas inscrições podem ser individuais ou virem respaldadas por associações populares, sindicatos, organizações não governamentais, universidades etc. Um pretendente não pode, teoricamente, inscrever-se por mais de um partido. Se o fizer, mesmo escolhido como candidato de um partido, pode ter seu nome impugnado pela Justiça Eleitoral, a pedido ou não de qualquer entidade ou cidadão. Terminado o prazo de inscrição partidária, cada partido terá seis meses para analisar os currículos de cada pretendente e escolher aqueles que devem concorrer por sua bandeira, em convenções a serem definidas por lei. Escolhidos os representantes, os partidos devem inscrevê-los imediatamente na Justiça Eleitoral, para, durante os próximos três meses, correrem os prazos para impugnações etc. Começa, então, a corrida eleitoral: por três meses, os partidos apresentarão ao povo os seus candidatos, devidamente financiados por dinheiro público de acordo com a lei que defina os critérios de propaganda, gastos etc. Os candidatos serão cidadãos comuns, devidamente legalizados pela Justiça Eleitoral, os quais, durante os três meses de campanha, são licenciados de seus empregos e sustentados pelo partido e pelo financiamento público definido em lei. Se eleito, seus empregos serão congelados até a sua volta. Se não, têm o direito de retomar sua vida normal, com, por exemplo, um ano de garantia de emprego. O mesmo valendo para aqueles que cumprirem o mandato. Não há direito à reeleição para o mesmo cargo e a lei pode definir ainda se haverá permissão para reeleição a cargos de volta, isto é, um deputado federal voltar a disputar mandato estadual ou municipal. De qualquer forma, devem ser definidas regras que evitem a criação de vínculos permanentes com os eleitores ou que permitam que se perpetuem na política os mesmos de sempre, para que se possa cumprir um processo de renovação constante dos quadros partidários. Os mandatos deverão ser, para todos os cargos, de seis anos. Mecanismos legais de controle podem, no entanto, ser ativados por cidadãos descontentes com a atuação de seus representantes, a partir do terceiro ano de mandato, com a finalidade de cassação ou substituição do político que não estiver trabalhando a contento da comunidade. A fidelidade partidária, durante o cumprimento do mandato, deverá ser um princípio fundamental: qualquer eleito que mudar de partido ou se desvincular do partido por que foi eleito ou, mesmo, não estiver cumprindo com as diretrizes partidárias, poderá ser cassado e ter seus direitos políticos suspensos, de acordo com a lei. Por outro lado, terminadas as eleições, os cidadãos não-eleitos se desvinculam automaticamente do partido pelo qual concorreram, podendo, nas eleições seguintes, se candidatar por qualquer outro. O número de partidos políticos em funcionamento será livre, porém o partido que não alcançar determinada densidade eleitoral, por duas eleições consecutivas, terá seu registro cassado, só podendo voltar a se reorganizar após um determinado período de quarentena, sendo tudo isso definido em lei. As eleições serão realizadas todas na mesma data. Somente depois da apuração dos resultados das eleições majoritárias (governos municipais, estaduais e da República) os candidatos aos cargos de senadores, deputados federais e municipais e vereadores serão definidos, dando-se ao partido vencedor a maioria de 50% mais um dos componentes do Senado e das Câmaras Legislativas. Assegura-se, assim, a governabilidade dos municípios, dos estados e do País, sem necessidade de negociação de apoios políticos e conchavos de qualquer espécie. Não serão, portanto, permitidas alianças partidárias. Eu creio que, com tal reforma política, possamos acabar de vez com o balcão de negócios em que se transformou o trato da coisa pública pelos políticos profissionais. Reduzidos a poucos e à direção partidária, sem direito ao voto popular, embora influentes, poderão ser mais bem controlados pela sociedade. Como não pode haver reeleição para o mesmo cargo, os cidadãos terão de apresentar bons serviços para tentar permanecer por mais tempo na vida pública. Mesmo assim, garantir-se-á a renovação constante dos quadros políticos e partidários. E isso transformará cada cidadão em potencial candidato, sem a necessidade de alianças espúrias e negócios sujos para obter legenda e se perpetuar nos cargos. Essa a reforma política de meus sonhos. Infelizmente, só meus.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

138 - POR UMA NOVA CONCEPÇÃO DE PARTIDO POLÍTICO

 

(Alexandre Evariste Fragonard - Boissy d'Anglas saluting the head of deputy Feraud)

A democracia é a única forma de governo capaz de dar algum tipo de dignidade ao ser humano. Volto ao tema, para falar, agora, de uma forma de democracia e de seus aspectos funcionais. Porque a democracia brasileira, neste início de milênio, precisa com urgência de uma reforma política profunda, que jogue para escanteio definitivamente todos os aproveitadores do bem público. Uma reforma que privilegie a arte da política e não os trambiqueiros de plantão que se apresentam em pele de cordeiro a cada ciclo eleitoral, perpetuando-se no poder como abutres a comer o fígado da nação, que um dia não mais regenerará ante a fome insaciável desses urubus. Uma reforma política que acabe com os políticos. Essa a única solução. Não a reforma que está por aí, simples paliativo de um problema que se torna cada dia mais trágico. Uma reforma que, simplesmente, elimine o político profissional da sociedade brasileira ou, pelo menos, coloque-o num curral específico e controlável, onde todos possamos vê-lo. Somos todos nós, o povo, os nossos próprios políticos. Não precisamos de intermediários, mas de representantes. Assim, a minha ideia é a seguinte. Primeiro: partidos políticos. Devem ser células mínimas de produção ideológica. Explico: um partido político deverá ter um número limitado de cidadãos, talvez uns dois mil, no máximo, que trabalhem para definir o seu espectro ideológico, suas propostas de sociedade, seus planos de governo, enfim, para estabelecer claramente perante o povo o tipo de País que deseja, caso obtenha o poder nas urnas, seja no âmbito federal, estadual ou municipal. Essas ideias devem ser divulgadas periodicamente, através dos meios de comunicação, como é hoje o horário eleitoral gratuito. Com algumas diferenças fundamentais: a propaganda será do partido e não de seus membros; não pode haver divulgações de realizações, mas apenas de ideias e projetos; não será permitido o aparecimento de membros do partido, mas os programas serão apresentados por profissionais do mercado. Neutros, portanto. E há mais um detalhe importante: esses membros permanentes do corpo partidário nunca poderão se candidatar a qualquer cargo. São apenas gestores partidários, homens e mulheres que tenham o ideal de construir uma proposta de Nação, mas não de se constituírem em representantes do povo. Também não poderão ocupar cargos oficiais nos governos de seus partidos, servindo apenas como uma espécie de conselho para os governantes, cuidando para que os planos traçados sejam postos em prática, de acordo com a carta do partido e suas propostas e planos. Terão prestígio, é claro, porque influenciarão decisivamente para o progresso do País e, por isso, deverão ser mantidos com bons salários por fundações arrecadadoras de fundos da sociedade, de forma clara e transparente, com suas contas sendo auditadas de acordo com a lei. Serão eles, na verdade, os únicos políticos profissionais em exercício permanente de sua atividade.

terça-feira, 19 de abril de 2022

137 - A VERDADEIRA REVOLUÇÃO ESTÁ NA EDUCAÇÃO

(Jean-Paul Louis Martin des Amoignes - La classe 1886)


A afirmação de que toda sociedade é intrinsecamente conservadora é um balde de água gelada nos ideais revolucionários. Mas, se não se pensar desse modo, ou seja, se não se aceitar que o conservadorismo do tecido social se torna mais forte à medida que se conquistam direitos fundamentais, acumular-se-ão cada vez mais os erros espetaculares de todas as tentativas de revolução. O povo apoia um governo revolucionário somente quando seu programa não espolia os seus direitos, não modifica o que já foi conquistado, não estabelece normas totalmente opostas àquilo que ele estava acostumado. Não conheço a revolução chinesa, se assim podemos chamar o processo de instalação de um governo de esquerda nesse país. O que se pode observar a distância é que a verdadeira revolução tem sido a de dar cada vez mais passos decisivos em direção ao capitalismo de mercado, depois de dezenas de anos de total controle estatal dos meios de produção. Há que se notar, no entanto, que a China de antes da revolução socialista promovida por seus líderes comunistas se constituía num país quase feudal, onde as experiências radicais podiam ser postas à prova porque havia um imenso campo fertilizado por séculos de atraso e abandono. O povo não tinha nada e o pouco que ganhou com a revolução foi significativo, em relação ao passado, mesmo à custa de imensos sacrifícios. Hoje, no entanto, o trabalho febril de quase um bilhão e meio de chineses tem conseguido avanços muito mais importantes do que todas as teorias revolucionárias dos primeiros tempos de implantação do regime comunista. E esses avanços apontam, cada vez mais, para uma economia de mercado de cunho capitalista, para inserção desse gigante no mercado internacional, no qual o capital dá as cartas e quem não tiver cacife não participa. Lá, no entanto, opera-se uma outra revolução, essa muito mais importante, embora silenciosa: a educação. Através do ensino, do aumento sistemático de pessoas com curso superior, para enfrentar não só os desafios do mercado internacional, mas também para derrubar qualquer possibilidade de guinadas bruscas para o conservadorismo, a China tem obtido vitórias significativas no avanço para uma sociedade mais justa, apesar de todas as dificuldades e da imensa propaganda contra esse processo que vem de todos os países capitalistas, diante de possível e provável ameaça chinesa aos rincões de Wall Street. Tio Sam e toda a sua caterva de seguidores fiéis têm posto as barbas de molho, diante do avanço do gigante no imenso bolo de dinheiro gerado pelo comércio dos países capitalistas. O exemplo da China quanto ao processo educacional deve ser seguido por todas as nações emergentes, cujos governos queiram dar passos decisivos para sair do atraso, sem importar revoluções sangrentas e autofágicas que, em geral, minam ainda mais as reservas já depauperadas de qualquer país capitalista situado na periferia das grandes decisões mundiais. E educação deve ser considerada como um dever estratégico prioritário de governos, e não como apenas mais dever. Pensar no futuro significa pensar em educação para camadas cada vez mais amplas da população. Somente com a formação de imensas massas críticas de cidadãos escolarizados, de cérebros pensantes e criativos, um país pode constituir reservas de inteligência capazes de revolucionar a sociedade, sem necessidade de armas e de derramamento de sangue. A revolução educacional é lenta e silenciosa, mas é a única capaz de realmente produzir frutos.


sábado, 16 de abril de 2022

136 - O PODER É SEMPRE CONSERVADOR

 

(Escultura do Rei Arthur no castelo de Tintagel, Inglaterra, por Rubin Eynon)

A aparente participação entusiasta de grandes populações em manifestações revolucionárias, quase sempre, é apenas um engodo de primeira hora, ou seja, as pessoas são levadas por entusiasmo a gritarem contra ou a favor de determinados movimentos, mas, quando a poeira baixa, o conservadorismo popular volta à tona, levando a que a revolução estabelecida entre no processo de autofagia a que toda revolução se condena, por não levar em consideração a falsidade do apoio popular ao seu programa de governo. Os governos revolucionários que se instalaram em todos os países ou estados do mundo sempre pagaram um alto preço por não terem a percepção exata da vontade conservadora do homem comum. Pagaram com autofagia ou desfiguramento total de suas propostas iniciais. E, após o processo de destruição da revolução esboçada, o retrocesso torna-se inevitável. A permanência no poder revela apenas que houve acomodação aos desejos populares das propostas inicialmente revolucionárias e, sob um tênue manto de mudanças conjunturais, a estrutura social e política continua a mesma, através da permanência ou conquista dos poderes periféricos pelos conservadores, gestando, assim, a reconquista do poder central pelos líderes conservadores do mesmo povo que antes saudava as mudanças e agora se coloca de forma muitas vezes silenciosa, mas constante, na oposição às reais motivações revolucionárias. Por isso, todo poder é conservador, como forma e medida de sua sobrevivência. E, se não há possibilidade de a revolução se construir a partir do poder nem a partir da tendência conservadora do povo, o sonho de mudanças profundas e permanentes do estrato social e político de um povo transforma-se em utopia e, muitas vezes, em pesadelo, o que é profundamente lamentável para as forças progressistas do mundo, às quais fica reservado o papel de influir apenas de forma indireta, através da organização de células educativas que possam de forma lenta e gradual mudar a percepção de mundo das camadas populares, o que, convenhamos, se constitui numa tarefa de longo, longuíssimo, prazo. Porque o processo educacional está nas mãos dos conservadores, através da manutenção e do reforço do ensino particular, pois os estados têm, cada vez mais, aberto mão do ensino público, no qual há mais liberdade de ação das forças consideradas progressistas do pensamento humano. A educação das massas para uma visão menos conservadora passa, diretamente, pelo fortalecimento das instituições públicas de ensino, em qualquer país do mundo, pois na escola pública os mecanismos de controle dos conservadores tendem a ser mais esgarçados, menos rígidos. Mesmo assim, a luta é árdua e difícil, pois não há um plano, uma conspiração consciente, apenas a noção vaga de que é preciso incutir outros valores que não os que se impuseram até agora na cabeça de nossos jovens. As forças conservadoras, nesse aspecto, são sempre muito mais competentes, porque sabem exatamente o que querem (manter o status quo), enquanto os objetivos revolucionários são extremamente difusos, porque não têm uma noção precisa do que colocar no lugar dos ideais conservadores. Sabe-se o que não se deve adotar, mas não se tem clareza quanto ao que adotar. Sabe-se que tipo de sociedade não se quer, mas não se sabe muito bem qual a sociedade ideal. Infelizmente.


quarta-feira, 13 de abril de 2022

135 - O CONSERVADORISMO DO HOMEM COMUM

 

(Gustave Caillebotte)


O problema maior para haver uma construção civilizacional por parte do homem comum constitui-se no seu conservadorismo. Os avanços, quando existem, são lentos e difíceis de assimilar. A história do homem comum é feita de pequenos incidentes que podem levar a grandes conquistas ou a grandes desastres, mas é sempre um processo lento, tendente a conservar aquilo que se conquistou, mesmo que essa conquista não seja a melhor para o conjunto da humanidade, embora seja perfeita para uma comunidade relativamente restrita. O povo, ao conduzir o processo histórico, tende a ter uma visão limitada desse mesmo processo, objetivando quase sempre o imediato, o restrito, o que lhe convém naquele determinado momento histórico e naquele determinado espaço territorial. E isso, muitas vezes, colide com os interesses maiores da humanidade. A ocupação de uma área pública ou privada por moradores sem teto e a consequente construção de moradias nesse espaço pode parecer, à primeira vista, uma grande conquista social. No entanto, se essa área ocupada se constitui em área preservada por ser, por exemplo, de mananciais estratégicos para a manutenção do fornecimento de água para toda a sociedade, isso não é levado em conta no processo de ocupação, com sérias consequências ecológicas para todos. O povo, quase sempre, tem uma visão muito pragmática da vida e uma concepção utilitarista dos recursos públicos, o que o torna, muitas vezes, um empecilho para uma verdadeira revolução. Aliás, o povo nunca faz revolução, porque o conceito revolucionário implica mudanças, a que o povo, em geral, é refratário.


domingo, 10 de abril de 2022

134 - O HOMEM COMUM

 

(Lyonel Feininger - Village near Paris)


A história da humanidade foi construída com momentos cruciais, em que decisões importantes foram tomadas por guerreiros, reis, príncipes, líderes religiosos e tantos e tantos outros homens (maioria) e mulheres (minoria) que tiveram em mãos o comando de uma grande ação. Mas, na verdade, o que conduz o destino dos povos não são os grandes acontecimentos, e sim a vida e a lida diárias dos cidadãos, colocados quase sempre como coadjuvantes no palco onde pretensamente brilham as chamadas autoridades. A construção de uma civilização não é tarefa para um líder, por mais pragmático que ele seja, mas uma lenta e penosa elaboração do dia a dia da população que pode ou não aceitar as ideias do líder e, através da prática comezinha das ações no lar, no trabalho, nas relações interpessoais, referendar os caminhos indicados ou palmilhar outros destinos, em busca daquilo que o povo acha melhor para si. Não há, nessa afirmação, nenhum traço de uma certa apologia do homem comum. Porque a entidade homem comum na maioria das vezes não tem nenhuma noção clara dos perigos a que se expõe, ao fazer escolhas totalmente erradas. E o grande número dessas escolhas tem levado a muitos desastres, tanto políticos quanto sociais. O povo se engana, e muito. A única vantagem do povo comum, do chamado senso comum, é que, assim como constrói determinados mitos e caminhos, também consegue se livrar dos mesmos, com relativa facilidade. A fidelidade do homem comum termina na exata medida de suas pequenas ambições. Dizem que o povo tem memória curta. Não é bem assim. O povo tem é medida curta para seus atos e suas simpatias ou antipatias. O que era bom num dia pode virar o péssimo do dia seguinte ou vice-versa. Todas as tentativas de manipulação da massa esbarram nessa falta de fidelidade. Pode, sim, o povo ser enganado, manipulado, por algum tempo, mas nada garante que o vento favorável a uma determinada facção manipuladora não mude de uma hora para outra, sem que haja o menor motivo aparente para isso.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

133 - PARA VENCER O FANATISMO

 

(Johannes Hendrikus Moesman - evening hour,1962)

 
O fanatismo, muitas vezes travestido de fundamentalismo, traz em si mesmo a barbárie e a estupidez. Deve o ser humano sensato, mesmo o adorador de qualquer deus, fugir de toda e qualquer associação em que os componentes se tratem por irmãos. Não somos irmãos, porque não somos filhos de quem quer seja a não ser de nossos pais fisiológicos. Qualquer tentativa de impor conceitos de irmandade transforma-se em sociedade de exclusão, de preconceito e, se a seita ou a associação que se constitui a partir desse tipo de denominação, tornar-se forte o suficiente, a perseguição aos excluídos, isto é, aos que não a adotam como crença, tem início, com todas as consequências a que estamos acostumados. Irmandades são construções muitas vezes xenófobas, de origem nazi-fascista ou racial ou religiosa, mas sempre contêm a ideia de dominação dos outros através do autorreconhecimento como seita salvacionista. Fugir dessa gente significa esvaziar movimentos fundamentalistas de origem cristã, muçulmana, judaica ou de qualquer outra origem. Todos os profetas dessas seitas miseráveis em sua concepção de mundo ordenado segundo suas vontades arrebanham seus seguidores com essa ideia de mansidão, de irmandade, de acolhimento dos que são menos favorecidos, para transformá-los em monstros de ódio a todos os demais, monstros muitas vezes dispostos a sacrificar a própria vida, a martirizar-se para impor o seu tipo de pensamento e, mais estúpido ainda, dispostos a matar o diferente como forma de agradar a um deus assassino e sôfrego pelo sangue tanto de seus pretensos mártires quanto de seus inimigos. E combater esse tipo de gente torna-se algo extremamente complexo e paradoxal. Se os deixamos agir, imbuídos da ideia de tolerância, somos julgados fracos, dominados por diabos ou pelo pecado, e, por isso, devemos ser destruídos, porque fraqueza significa confissão, diante do deus deles, de que não somos dignos. Se os combatemos pela força, além da perda de inúmeras vidas inocentes, como sói acontecer nesse tipo de atitude, construímos mártires, porque esse tipo de gente transforma em herói todo aquele que morre pela causa. Então, não há muitas saídas no combate aos fundamentalismos e fanatismos. O bom senso, a velha e boa arma de que dispõe o homem, sugere que busquemos uma solução que contemple nem tanto o combate frontal nem tanto a tolerância enfraquecedora. Entre esses dois extremos, de cuja dificuldade não conseguimos nos livrar, mas que devemos adotar, deve haver um longo processo de investimento na educação, no convencimento através de ações que promovam nas gerações mais novas um outro tipo de visão de mundo, mais de acordo com os valores de respeito às individualidades, de convivência pacífica entre os contrários, de aceitação do outro como necessário à diversidade da própria vida. Sei que isso pode parecer um tanto inocente diante dos atentados brutais das forças da intolerância, tanto de um lado quanto de outro, porque nessa guerra não há inocentes, mas creio ser a única saída para a humanidade. Será um caminho difícil, oneroso, complexo, de idas e vindas, de ações arriscadas, em que muitas vidas ainda se perderão nos meandros do ódio, mas não há outra saída. Enquanto se adotar a velha lei de talião, enquanto a vingança for a única forma de reação, os dois lados da guerra contra o fanatismo se tornam tão extremistas quanto os profetas barbudos e insanos desejam como palco ideal para o fomento de suas ideias assassinas. A estupidez é sempre a bandeira maior de todos os extremistas, de todos os vingadores, de todos os fundamentalistas. E estupidez só se combate com o lento processo educacional de convencimento e de troca de valores. Mas, para isso, para que esse processo seja efetivo, não podemos simplesmente imaginar que devem se sobrepor os valores de um dos lados, mas buscar o equilíbrio numa nova vertente de pensamento humanista que jogue na lixeira da humanidade todas as formas de deísmo e de crenças estúpidas há tanto tempo elaboradas pelos homens. Talvez, uma nova humanidade, portanto. Uma nova humanidade sem deuses, sem religiões, sem castas, sem raças, sem nações e etnias. Utópica, mas necessária.


segunda-feira, 4 de abril de 2022

132 - O AVESSO DA HARMONIA

 

(Kojo Marfo - Peddlers Corner)

Tenho pensado no conceito de beleza. Somos credores de grandes avanços da cultura grega e romana, mas há aspectos dessa cultura que tomaram conta da mente ocidental, sem que houvesse qualquer oposição ou, se houve, nunca obteve resultados. O belo, para os gregos, principalmente, consistia no equilíbrio. O mundo do pensamento grego é um mundo ordenado, em que todas as coisas se encaixam em busca de um tipo de perfeição. A harmonia da arte grega mantém o ocidente preso a esses conceitos, como se não houvesse nenhuma outra saída para o belo que não fosse a procura da harmonia. E isso contaminou também a ética: o belo é moralmente bom. Tudo o que não fosse harmônico, não seria belo e, portanto, não seria bom. Não sendo bom, deve ser destruído. A contaminação desse conceito no cristianismo é patente, em níveis mais profundos: a divindade absoluta dos cristãos foi concebida como perfeita e, por isso, muitas vezes representada por um triângulo equilátero, símbolo da perfeição, ou por um círculo, pelo mesmo motivo (as auréolas dos santos, por exemplo), e por muitos outros símbolos que são considerados exemplos de perfeição. Assim, sendo o deus perfeito, os que o seguem também são ungidos por essa espécie de perfeição e tornam-se modelos do belo. Tudo o que for diferente do cristão deve ser destruído, para não ofender a perfeição do deus. Os negros são desumanizados, para se tornarem escravos, porque são diferentes. Os povos indígenas das Américas também não merecem sobreviver dentro do mundo perfeito do deus cristão, porque a sua cultura, a cor de sua pele, seus rituais e sua linguagem ofendem a perfeição desse deus e, portanto, não importa que sejam destruídos. O belo é sempre justo, dentro dessa concepção. Por isso, não há remorso na igreja católica apostólica romana, mesmo quando pede perdão pelas perseguições a gentios, como judeus ou outros povos. Mesmo o barroco, que subverte um pouco o conceito de harmonia, é assimilado como o exagero da perfeição, a harmonia levada a extremos de complexidades, como se o belo horrível fosse apenas o outro lado de uma mesma moeda. Nesse aspecto, a aceitação do barroco detém o seu gérmen contraventor, amolda-o aos bem-comportados ensinamentos dos mestres gregos, como um desvio que não contrapõe, ao contrário, apenas reforça a estética grega de perfeição. O barroco é o perfeito do avesso, mas ainda assim perfeito. Note-se que na profusão de linhas, de cores, de sombras e luz das igrejas barrocas, aparecem novas harmonias e equilíbrios que apenas escondem ou entremostram as harmonias e equilíbrios da arte grega, não há contravenção, não há ruptura profunda, a superfície rugosa se sobrepõe à lisa como uma capa que busca esconder a nudez de Vênus. Assim, o conceito de belo cristalizou-se em nossa mente e não conseguimos enxergar, ou melhor, poucos conseguem enxergar a beleza em outras linhas realmente quebradas e desequilibradas que existem no universo, como formas perfeitamente possíveis. Eu acredito que belo seja aquilo que apreciamos, e não aquilo que impõe como belo a nossos olhos. Dizer que tal povo ou tal pessoa são feios significa julgá-los por padrões pré-estabelecidos e, portanto, significa um juízo de valor preconceituoso e bárbaro. Os nossos antepassados condenavam à existência em circos, como um zoológico absurdo, todos os seres humanos que eles taxavam de monstruosos, por portarem algum tipo de deformidade. Expressavam, assim, todo o preconceito da longa e terrível impressão em nossas mentes dos ideais de beleza preconizados pelos gregos e assimilados pelos cristãos. O diferente devia ser tratado como monstro ou ser destruído. Sempre foi assim e continua sendo assim. Trata-se de um traço de barbárie travestido em cores de civilização, por conter elementos de um povo julgado superior por sua produção artística e intelectual, esquecidos de que somos dotados da infinita capacidade humana de aceitar como verdade tudo aquilo que é repetido à exaustão.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

131 - ANARQUIA E CIVILIZAÇÃO (QUASE) PERFEITA

 

(Joan Snyder - See what a life… 2010)
 

Aos textos precedentes, acrescento, depois de algum tempo, um adendo fundamental. Tenho pensado na sociedade ideal ou numa sociedade menos bárbara e mais civilizada. Mas, a sociedade realmente ideal – por mais utópica que isso possa parecer – será constituída em cima de dois pilares ou de dois princípios: a ausência de deus e a ausência de leis. Ou seja, a anarquia quase absoluta. Quando o homem não precisar de deus ou de deuses; quando o homem não precisar mais de leis que regulem sua conduta, então teremos – aí, sim – o super-homem, o homem em sua grandeza absoluta, o homem totalmente desprovido de quaisquer resquícios de barbárie. O caminho será longo, tortuoso e complexo: passará por muitas tentativas de aperfeiçoamento dos sistemas democráticos, o que é absolutamente necessário, até chegar a uma regulação quase total de todos os atos humanos, numa espécie de ditatura legislativa, em que tudo, absolutamente tudo, será regulado, desde os atos mais comezinhos do dia a dia, até as atitudes heroicas e patrióticas. Então, a guerra terá sido suprimida do imaginário humano. E pouco a pouco, a noção de assassínio também será eliminada. E o ser humano – cansado de tantas regras e leis, purgados os seus instintos mais bárbaros – começará a dar conta de que o respeito ao outro é que deve ser a lei fundamental, não escrita, mas internalizada. Aí, sim, todos os regulamentos, todas as leis, todas as regras deverão ser queimados, já que a memória de deus ou de deuses terá sido definitivamente expurgada da mente humana, e o novo “super-homem” viverá, enfim, livre de todas as amarras e não precisará nem de deus nem de leis, porque terá alcançado a suprema noção de respeito a si, ao outro e à natureza, ao meio em que vive. Sem conceitos babacas de humanismo tosco, como o que existe na máxima cristã do “amai-vos uns aos outros”, cada ser humano olhará seu semelhante e verá que a vida que flui em suas próprias veias é a mesma vida que flui no outro e que deve ser respeitada. O outro não mais será o inimigo, mas apenas o outro, com quem conviverá quando necessário, em harmonia, em contratos individuais de paz e de respeito. E essa última palavra, respeito, é que ditará todas as condutas, sem necessidade nem de intervenções e ameaças divinas nem de regras e leis estúpidas. Os governos não mais serão governos, mas apenas órgãos de administração dos bens públicos mantidos com o pagamento não mais compulsório, mas acordado em função das necessidades, dos impostos de todos os cidadãos, conforme a capacidade real de cada um. A anarquia absoluta é mais do que impossível, como se pode deduzir, mas a anarquia consensual, em que o cidadão sabe de suas responsabilidades perante o todo da sociedade e do meio-ambiente, essa será, sem dúvida o ponto culminante da evolução do homem como ser gregário, já que a perfeição – se e quando atingida – decretaria a própria extinção do homem, esteja ele onde estiver, nesse universo sem fim.

187 - PALAVRA FINAL: O ALÉM DO HOMEM

  (Vincent van Gogh) Tenho plena consciência de que tudo quanto eu escrevi até agora constitui um rio caudaloso, uma pororoca, sobre a qual ...