segunda-feira, 4 de abril de 2022

132 - O AVESSO DA HARMONIA

 

(Kojo Marfo - Peddlers Corner)

Tenho pensado no conceito de beleza. Somos credores de grandes avanços da cultura grega e romana, mas há aspectos dessa cultura que tomaram conta da mente ocidental, sem que houvesse qualquer oposição ou, se houve, nunca obteve resultados. O belo, para os gregos, principalmente, consistia no equilíbrio. O mundo do pensamento grego é um mundo ordenado, em que todas as coisas se encaixam em busca de um tipo de perfeição. A harmonia da arte grega mantém o ocidente preso a esses conceitos, como se não houvesse nenhuma outra saída para o belo que não fosse a procura da harmonia. E isso contaminou também a ética: o belo é moralmente bom. Tudo o que não fosse harmônico, não seria belo e, portanto, não seria bom. Não sendo bom, deve ser destruído. A contaminação desse conceito no cristianismo é patente, em níveis mais profundos: a divindade absoluta dos cristãos foi concebida como perfeita e, por isso, muitas vezes representada por um triângulo equilátero, símbolo da perfeição, ou por um círculo, pelo mesmo motivo (as auréolas dos santos, por exemplo), e por muitos outros símbolos que são considerados exemplos de perfeição. Assim, sendo o deus perfeito, os que o seguem também são ungidos por essa espécie de perfeição e tornam-se modelos do belo. Tudo o que for diferente do cristão deve ser destruído, para não ofender a perfeição do deus. Os negros são desumanizados, para se tornarem escravos, porque são diferentes. Os povos indígenas das Américas também não merecem sobreviver dentro do mundo perfeito do deus cristão, porque a sua cultura, a cor de sua pele, seus rituais e sua linguagem ofendem a perfeição desse deus e, portanto, não importa que sejam destruídos. O belo é sempre justo, dentro dessa concepção. Por isso, não há remorso na igreja católica apostólica romana, mesmo quando pede perdão pelas perseguições a gentios, como judeus ou outros povos. Mesmo o barroco, que subverte um pouco o conceito de harmonia, é assimilado como o exagero da perfeição, a harmonia levada a extremos de complexidades, como se o belo horrível fosse apenas o outro lado de uma mesma moeda. Nesse aspecto, a aceitação do barroco detém o seu gérmen contraventor, amolda-o aos bem-comportados ensinamentos dos mestres gregos, como um desvio que não contrapõe, ao contrário, apenas reforça a estética grega de perfeição. O barroco é o perfeito do avesso, mas ainda assim perfeito. Note-se que na profusão de linhas, de cores, de sombras e luz das igrejas barrocas, aparecem novas harmonias e equilíbrios que apenas escondem ou entremostram as harmonias e equilíbrios da arte grega, não há contravenção, não há ruptura profunda, a superfície rugosa se sobrepõe à lisa como uma capa que busca esconder a nudez de Vênus. Assim, o conceito de belo cristalizou-se em nossa mente e não conseguimos enxergar, ou melhor, poucos conseguem enxergar a beleza em outras linhas realmente quebradas e desequilibradas que existem no universo, como formas perfeitamente possíveis. Eu acredito que belo seja aquilo que apreciamos, e não aquilo que impõe como belo a nossos olhos. Dizer que tal povo ou tal pessoa são feios significa julgá-los por padrões pré-estabelecidos e, portanto, significa um juízo de valor preconceituoso e bárbaro. Os nossos antepassados condenavam à existência em circos, como um zoológico absurdo, todos os seres humanos que eles taxavam de monstruosos, por portarem algum tipo de deformidade. Expressavam, assim, todo o preconceito da longa e terrível impressão em nossas mentes dos ideais de beleza preconizados pelos gregos e assimilados pelos cristãos. O diferente devia ser tratado como monstro ou ser destruído. Sempre foi assim e continua sendo assim. Trata-se de um traço de barbárie travestido em cores de civilização, por conter elementos de um povo julgado superior por sua produção artística e intelectual, esquecidos de que somos dotados da infinita capacidade humana de aceitar como verdade tudo aquilo que é repetido à exaustão.

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