sexta-feira, 24 de setembro de 2021

070 - SUPERAÇÃO DA METAFÍSICA

(Laura Knight) 


Sento-me sobre a areia, na praia deserta. O movimento do mar atrai meus olhos e tudo em volta me dá plena noção da beleza do universo, desse mundo em que eu moro, feito de átomos, de substâncias concretas, em que terra, água, ar, plantas, peixes, animais, seres vivos e seres inanimados convivem numa pretensa harmonia. Se sou um místico ou um metafísico idiota, pensarei num criador de todas essas maravilhas que ele – o tal criador – colocou à minha disposição. Então, com os olhos marejados, empreendo uma prece a esse deus, agradecendo-lhe por estar vivo, por poder desfrutar com meus sentidos de todas essas maravilhas. O sol gira em torno de mim e eu sou o rei desse universo, criatura poderosa de um deus magnânimo, cuja energia percorre o meu corpo e me faz vibrar em uníssono com a natureza. Vejo e sinto que a harmonia que a natureza me revela provém desse deus a quem devo satisfação por todos os meus pensamentos, a quem devo pedir perdão por meus pecados. E então, como um choque de realidade, lembro que há apenas uma semana (hoje são dois de janeiro de 2005), um maremoto no distante Oceano Índico provocou ondas gigantescas (tsunami) e matou mais de cento e cinquenta mil pessoas (o número preciso de mortos talvez nunca seja conhecido). Olho mais uma vez o mar que vai e volta em ondas calmas e, se for, agora, o cético que eu sou, saberei que não há harmonia nenhuma na natureza e, sim, um equilíbrio trágico de forças que se agrupam, se ajudam e se opõem, numa cadeia que nada tem de mágica ou de harmoniosa, apenas e tão somente equilíbrio. E que não há nenhum deus, nenhum ser metafísico ou criador; que a natureza segue sendo apenas forças que se combinam para criar tudo o que estou vendo e que a natureza não tem bondade nem beleza, tem apenas a si mesma e que todo conceito de beleza está dentro de meus olhos de homem condicionado a ver beleza onde apenas há a natureza; e onde há natureza, tudo é o que é, sem fealdades e sem quaisquer outros adjetivos. Nós, os humanos, criamos os adjetivos para uma natureza que é só substantiva, que não se preocupa com nada além do seu próprio existir. E cometo uma impropriedade em usar o verbo “preocupar-se”, mas sinto que nosso sistema de conhecimento, emparedado pela linguagem, está profundamente contaminado pelo aristotelismo, pela metafísica inútil. A natureza, na realidade, não tem “preocupação” alguma. Nós é que somos os preocupados em criar categorias, em imaginar coisas que não existem e acreditar nelas. Inventamos porque somos capazes de inventar, mas não precisamos acreditar em todas as invenções. Se num grão de areia há toda uma história e pode haver um microuniverso vivente, não temos razão, por isso, de imaginarmos que haja uma força criadora por trás de cada movimento da onda, de cada oscilação no eixo da terra, ou que há um destino a que nossos passos na terra estejam condenados. A imagética humana destrói toda e qualquer possibilidade de compreensão dos fenômenos naturais e atrasa a mente humana na compreensão de si mesma. Se olho o mar e vejo apenas o mar, nada mais que o movimento provocado por ventos e outras forças naturais, isso não quer dizer que não veja poesia e beleza nesse incessante vaivém. Mas devo estar bem consciente de que essa poesia, essa beleza, são categorias criadas por mim para melhor apreciar, com meu juízo extremamente limitado, algo que existe, algo que pode estar muito além da minha compreensão e com o qual compartilho minha existência. O poeta não precisa ser metafísico para experimentar a sensação da beleza, o sentimento da poesia: basta olhar a natureza como ela é para sentir em si o que se pode chamar espetáculo da existência e considerar esse espetáculo a própria razão de existirmos e podermos contemplá-lo, sem necessidade de recorrer a pensamentos mágicos que, por serem mágicos, são absolutamente inúteis. A liberdade da mente humana está condicionada à superação da metafísica. Somente quando a nossa mente deixar de nos pregar peças que nos levem a uma interpretação mágica da natureza, é que conseguiremos adquirir um estado de consciência plena de nossos reais poderes como seres humanos e, então, guiados apenas pela racionalidade, deixaremos de nos odiar por motivos estúpidos como os conceitos de raça, de religião, de nacionalidade, ou como diferenças de usos e costumes, de cor da pele ou qualquer outra bobagem que categoriza e divide o ser humano. A metafísica só criou, até agora, superstições absurdas que, por sua vez, geraram diferenças que geraram ódios que geram guerras, genocídios e assassinatos. O ser humano ainda vai derramar muito de seu sangue antes que essas superstições sejam superadas, mas essa superação é a única saída para a humanidade.


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