segunda-feira, 16 de agosto de 2021

058 - BUSCAR UTOPIAS

   

( Michel Michaux -les musiciens de San Marco)

crença numa democracia absoluta não condiz com a realidade humana e com a natureza. Deve-se, sim, buscar sistemas de justiça, de igualitarismo social e político, de meios que tragam oportunidades para todos. Até mesmo, oportunidades iguais. E, acima de tudo, pregar e praticar o respeito ao humano. No entanto, não há democracia na natureza e não há democracia entre os humanos. Somos parte de uma cadeia evolutiva, em que há desigualdades gritantes entre os seres. Alguns nascem tortos, defeituosos, frutos de problemas genéticos, com dificuldades imensas de adaptação à vida. Outros nascem mais aparelhados para a vida, até mesmo mais inteligentes. Respeitar essas diferenças é democrático e é obrigação de todos. Cuidar para que os menos ajustáveis tenham a melhor vida possível é dever de um estado democrático e de uma sociedade justa. O deísmo os trata com os princípios da caridade, ou seja, são vistos como criaturas de deus e merecem comiseração. Esse não é o caminho. Não merecem comiseração, mas respeito. São, sim, uma espécie erro do processo evolutivo, experiências que não deram certo, mas não podem ser descartados como inúteis. Porque são seres que nasceram assim para que a natureza, ao promover desvios e atalhos, siga o seu curso e obtenha melhores resultados. E a vida humana tem de ser respeitada, por mais precária que seja. Não com o dó e a comiseração dos deístas, mas com o respeito devido aos processos da natureza. A humanidade criou maravilhas como a música, a literatura, a poesia, as artes, as ciências e os esportes, e ainda muitas coisas mais. Obras de um ou mais gênios, de seres cuja capacidade intelectual transcende até mesmo nossas mais complexas teorias sobre a inteligência humana. Seres privilegiados que viveram para nos espantar e maravilhar com suas criações, com sua capacidade de interpretar uma determinada realidade e transformá-la em beleza ou melhoria para o gênero humano. Podemos discordar profundamente de muitos de seus pensamentos, de seus sistemas filosóficos, mas não podemos negar-lhes a condição de seres especiais. Suas obras, no entanto, não alcançam nem a maioria das pessoas que vivem, hoje, por exemplo, sobre a terra. Porque uma parte considerável é constituída de homens e mulheres desprovidos de capacidade de entendimento dos mais rudimentares sistemas matemáticos, físicos, biológicos, em suma, de entendimento de como funciona a vida, por mais simples que isso seja. Incapazes de uma compreensão mais profunda da própria existência, arrastam suas vidas no mesquinho mundo das miudezas diárias e, quando colocados diante do belo, podem até obter por instantes o alumbramento do universo, mas são incapazes de absorver qualquer teorização científica em relação aos fenômenos do seu próprio dia a dia. A sua compreensão do mundo resume-se a ideias provindas de um longo e penoso aprendizado de seus ancestrais, uma meia dúzia de conceitos que lhes permitem viver e sobreviver, como, por exemplo, rudimentos de agricultura e manipulação de alimentos. Mesmo que, por uma condição mágica qualquer, pudéssemos transformá-los, de repente, em seres mais aptos a uma compreensão mais complexa do mundo, isso não os tiraria da situação miserável em que vivem. Como é impossível torná-los melhores por mágica, somente um esforço considerável por parte da sociedade dita mais culta pode, primeiro, tirá-los da miséria, matar-lhes a fome e provê-los de meios menos brutais de sobrevivência e, depois, conseguir que se eduquem, que eduquem os filhos e netos, para que as próximas gerações obtenham, pouco a pouco, uma noção mais clara do mundo e atinjam estágios de evolução que lhes permitam chegar às obras dos grandes artistas, filósofos e cientistas que, a essa altura, já terão, por sua vez, avançado milhares de anos à frente de seu tempo para desvendar outros mistérios do mundo em que vivemos. Será, portanto, impossível que todos os homens, democraticamente, tenham acesso ao conhecimento mais profundo, embora seja essa a utopia que devamos perseguir sempre. Porque buscar utopias é uma das razões da existência humana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

187 - PALAVRA FINAL: O ALÉM DO HOMEM

  (Vincent van Gogh) Tenho plena consciência de que tudo quanto eu escrevi até agora constitui um rio caudaloso, uma pororoca, sobre a qual ...