quarta-feira, 25 de agosto de 2021

061 - O AÇOUGUE FUNDAMENTALISTA

 

(Antoine Caron - 1521-1599 - Augustus und die Sibylle von Tibur)

Voltar os olhos para o passado e contemplá-lo como um espelho do futuro tem sido a maldição do homem. O passado está morto, enterrado, mas não superado. Admiramos como feitos extraordinários conquistas sanguinárias de todos os tempos. Erigimos estátuas aos guerreiros e assassinos. Adoramos os falsários da ideologia, com seus sistemas filosóficos e religiosos baseados em superstições tolas. Ajoelhamo-nos diante de deuses rancorosos e vingativos. Acreditamos em valores que privilegiam a morte em detrimento da vida. Criamos falsos motivos para continuar matando. Inventamos leis e regulamentos para manter os excluídos ainda mais distantes de quaisquer possibilidades de se humanizarem. O ser humano é seu próprio lixo. E, como lixo, revira a história para comer merda e se alimentar de vermes. Somos vermes e queremos ser deuses. Ainda estamos muito longe de atingir um grau mais sofisticado de civilização, pois tem prevalecido até agora o conceito de que a civilização precisa matar para se impor, quando, na verdade, uma civilização não se impõe, apenas existe e respeita as diferenças como respeita a si mesma. O grau de barbárie varrido para debaixo do tapete da história da humanidade e visto como elemento civilizador tem atingido as raias da loucura, neste século vinte e um que se inicia com guerras de conquista e aprofundamento da condição de miserabilidade de inúmeros povos. Os Estados Unidos se auto-intitulam xerifes do mundo, com direito a invadir uma outra nação e matar sem dó seus pretensos inimigos. Gastam-se milhões de dólares em armamento e guerras, enquanto a África agoniza em miséria e doenças. Aprofundam-se as diferenças entre Ocidente e Oriente por motivos ideológicos, religiosos e de estranhamento de culturas diferentes. Criam-se barreiras de ódio para disfarçar interesses econômicos de grandes corporações que se utilizam de todo o ideário deísta para auferir lucros fantásticos para seus acionistas confortavelmente instalados em ilhas de tranquilidade defendidas por jovens soldados que morrem como insetos nos campos de batalha no Iraque ou no Afeganistão, para defender um falso orgulho nacionalista ou, o que é pior, para tentar caçar e matar terroristas famintos e aterrorizados que ousaram, um dia, confrontar o ideário capitalista desses monstros de cara rosada e sorridente que frequentam a alta sociedade do mundo dos que mandam e elegem presidentes idiotas ou mal-intencionados, comprometidos com o poder de seus bilhões de petrodólares. O que Sócrates, Platão, Aristóteles e seus seguidores diriam do mundo de hoje? Com certeza enalteceriam o poder de fogo e de conquista da nação mais poderosa do mundo e se orgulhariam da democracia que eles inventaram e que essa nação tripudia com seu sistema espúrio de eleições em que se joga a moedinha de cara ou coroa apenas como forma de enganar os incautos, pois nada há de mais semelhante do que as duas faces de uma mesma moeda. O conceito de democracia representativa apodreceu nos meandros da corrupção, da disputa do poder pelo poder. E não há nada para se pôr no lugar. Aquilo que o ser humano inventou, o dinheiro corrompeu. Os Estados Unidos, como modelo de nação, nasceram dos anseios espúrios de huguenotes, batistas, anglicanos e tantas outras igrejas que têm em comum o ódio ao diferente e o arraigado amor a seus princípios bíblicos fundamentalistas. Os Estados Unidos cresceram graças à capacidade asinina de trabalho dessas mesmas tribos que, à medida que se fortaleceram, tornaram-se cada vez mais sedentas de sangue, de poder, de desejo de domínio e de expansão, para levarem suas ideias e seu ideário fundamentalista cristão ao restante do mundo. Este o mal dos fundamentalistas, de todos os fundamentalistas: não podem aceitar que qualquer rebanho escape das bênçãos de seu deus, mesmo que seja preciso dizimar os pagãos, os apóstatas, os hereges, os diferentes, enfim. Aos olhos de seu deus, mais vale salvar a alma, matando o corpo, do que deixar o outro sem a luz de seus ensinamentos. Submissão à vontade do deus significa tornar-se missionário de seu desejo. Matar e morrer por esse deus é a palavra de ordem aos milhões de seguidores que entregam sua carne ao açougue das guerras de conquista, enquanto os comandantes amealham os despojos para aumentar sua riqueza e seu poder. Acenderam uma vela a esse deus e outra ao diabo, ao construírem uma nação ao mesmo tempo profundamente cristã, no mais torpe sentido dessa doutrina, e materialista, baseada no mais extremado individualismo capitalista que prega o direito à propriedade e a defesa dessa propriedade com unhas, dentes, conquista e destruição de qualquer pretenso inimigo que ouse ameaçar, contestar ou apenas erguer os olhos contra algum de seus princípios. Os Estados Unidos são, portanto, o xerife do mundo baseados em verdades absolutas. O povo estadunidense, mesmo quando se opõe à vontade autoritária de líderes bélicos, não tem como escapar das armadilhas de sua história. É um povo condicionado a pensar que o mundo todo marcha com o pé trocado, enquanto só eles têm condição de seguir o ritmo dos tambores. E tambores batidos pelos ideólogos fundamentalistas que marcaram indelevelmente as páginas de construção e soerguimento de um Estado dominado por crenças milenares que alimentam a estupidez e a cupidez humanas, desde os tempos de um pretenso poeta cego chamado Homero. E é sábia a lenda que lhe atribui tal defeito, pois somente a cegueira poderia levar um ser humano (ou um conjunto de seres humanos) a construir um espetáculo de horrores bélicos e carnificinas em cima de uma estrutura literária de tamanha beleza. E é este o paradoxo trágico da história do homem: construir palácios de cristal, para moradia de deuses e governantes, com os ossos, a carne e o sangue de milhões de anônimos encontrados no lixo das guerras e das carnificinas inúteis.


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