segunda-feira, 25 de julho de 2022

166 - SHADENFREUDE

 

 (Fra Angelico - o juízo final)

Vingança. Quem com ferro fere com ferro será ferido. Olho por olho, dente por dente. E assim, cristalizada em nossa mente através de inúmeros adágios e crenças, a vingança atormenta o coração do ser humano. Não existe o mal, o mal absoluto, criação metafísica para nos iludir nas crenças de deuses cruéis e seus inimigos poderosos. Mas existe, sim, o mal praticado diariamente, como formigas que picam e fogem, como espinheiro em canteiro de flores. O ser humano tem o dom de fazer o mal. Não se contenta em viver, apenas, a sua vida. É preciso espicaçar o semelhante. É preciso pisar, esfolar, matar. E rejubila-se com isso. E goza o prazer de ver o desafeto na pior situação possível. Há, em alemão, uma palavra que resume o sentimento mesquinho de ver o pretenso inimigo na situação mais trágica, que explica o júbilo de não apenas vencer e estar bem, mas também ver o outro humilhado, despedaçado, é a alegria com a desgraça alheia: Shadenfreude. Os deuses criados por todas as religiões humanas até agora são todos adeptos da vingança. Se não estamos com eles, estamos contra eles. E para todos os inimigos, o fogo eterno, as desgraças, o sofrimento. Não há meio termo. E rejubilam-se com a destruição de cidades inteiras, porque nelas há pecadores. Shadenfreude. Vingança pura. E a perpetuação da barbárie. Nossa sociedade dita cristã construiu-se assim: na ideia da vingança. As demais sociedades deístas também. Porque deus é Shadenfreude. Se chove demais é porque há pecadores que mereciam as enchentes, a destruição de suas casas, esquecidos de que se há ali pecado é o pecado da estupidez em desafiar as forças da natureza. Se há seca é porque os deuses assim o querem, para punir aqueles que não os seguem, não se sacrificam, esquecidos de que o único sacrifício dos que convivem com seca está em aceitar a condição de miseráveis, sem se revoltar contra aqueles que lucram com a seca e espezinham os pobres para continuarem enriquecendo. É dentro do princípio da vingança que se escrevem muitas de nossas leis penais. A intenção não é punir o criminoso, afastá-lo do convívio dos demais, por ser um indivíduo perigoso, mas vingar-se dele, jogá-lo no mais fétido calabouço e deixar que seja corroído pelos vermes, como se essa vingança tivesse o condão de fazer voltar à vida aqueles que ele assassinou. Puro Shadenfreude. Então, quer-se a pena de morte, o espetáculo da morte transformado em teatro estúpido de punição, ou melhor, de vingança, para gozo dos sádicos de plantão, dos deístas de carteirinha, dos fundamentalistas de todos os credos. Corta-se a mão ao larápio, espanca-se em praça pública o desafeto, apedreja-se a adúltera, tudo como forma espúria de vingança, em nome do deus da barbárie. Os animais matam para comer, para se alimentar; o ser humano, por prazer ou por vingança. E perpetua a barbárie. Pode-se invadir um país para se vingar das atrocidades de seu governante e cometer, assim, atrocidades maiores: Shadenfreude. Como se pôde jogar sobre a cabeça de milhares de civis uma bomba atômica, como forma de punir todo um país pelo erro de seus estúpidos governantes: Shadenfreude. Como se pôde construir dezenas de campos de concentração e lá jogar milhões de pessoas e depois assá-las em fornos crematórios, como forma de se vingar contra a prosperidade de um povo que tem no comércio e no lucro a fonte de sua própria existência e, mais, como forma de punir esse mesmo povo por ter cometido e cometer ainda tantas outras atrocidades: Shadenfreude. Pôde-se e ainda se pode destruir tribos inteiras de indígenas, simplesmente porque não aceitam nossas crenças ou porque têm costumes diferentes dos nossos: Shadenfreude. E pode-se mandar para o inferno aqueles que fornicarem nus, embora sejam cônjuges devidamente unidos pelas leis idiotas de profetas mal amados ou mal interpretados: Shadenfreude. E a barbárie estupidifica a mente do ser humano. E perpetua-se.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

187 - PALAVRA FINAL: O ALÉM DO HOMEM

  (Vincent van Gogh) Tenho plena consciência de que tudo quanto eu escrevi até agora constitui um rio caudaloso, uma pororoca, sobre a qual ...