domingo, 26 de dezembro de 2021

100 - DEUS É UM VÍCIO NA CABEÇA DO SER HUMANO

 

(Escultura de Maya Lin - a mesa de Einstein)

Esquecemos, com o tal “milagre da criação divina”, que há um outro “milagre”, muito mais extraordinário que a criação: a longa e lenta evolução das forças da natureza, a construir de forma aleatória e através de experiências fantásticas uma trajetória que parte de um organismo unicelular (por sua vez fruto de forças evolutivas tremendas) para a construção de um animal que pensa, fala, sonha e se insere de forma às vezes atabalhoada num mais do que rico sistema vital, onde todas as forças da natureza se relacionam e dependem umas das outras. Não há desdouro em aceitar o nosso passado animal, porque não somos, dentro do raciocínio evolucionista, o último elo dessa corrente e também porque não sabemos o que seremos daqui a milhões de anos. Um milênio é como um segundo no grande painel do tempo que se conta em números tão fantásticos que nosso cérebro ainda tem dificuldades de compreender. O ser humano, com todo o seu potencial, com toda a sua inteligência, adquirida num lento processo que não ainda não terminou, é um ser imperfeito. A natureza tem feito inúmeras tentativas de aperfeiçoamento da nossa principal máquina, o cérebro, e por isso coexistem em todas as civilizações tanto os gênios quanto os imbecis. Também não há desdouro em reconhecer a existência dos imbecis, dos seres que, embora humanos, nasceram com muito poucos dotes de inteligência, ou ainda, aqueles que, embora com uma grande capacidade cerebral, apresentam falhas terríveis de caráter e pendem para o lado mais negro da humanidade, como certos líderes cujos nomes nem vou lembrar, para não cometer a injustiça de omitir vários outros nomes de tantos monstros que assombram a história humana. Não há preconceito ou rancor em aceitar a existência de seres extraordinários, tanto numa ponta quanto na outra. Os pouco dotados, os que chamei acima de imbecis (sem nenhuma conotação pejorativa, mas por falta de palavra mais apropriada), devem merecer nosso respeito, como resultado de combinações genéticas que ainda não controlamos nem sabemos se um dia controlaremos. Quanto aos que causam desgraças terríveis à humanidade, os loucos e megalomaníacos, assassinos e tarados em geral, são também fruto desses mesmos genes e a humanidade terá de aprender a se defender de seus atos. Não são, nem os gênios nem os loucos nem os “santos” nem os “demônios”, frutos da mente inescrutável de uma divindade, mas seres humanos, demasiado humanos, para recuperar o título de um livro de Nietzsche. Não é à toa que o deus que esses humanos criaram, à força de nele pensar, é um deus que tem, elevadas a várias potências, as mesmas qualidades humanas e mais algumas que consideramos supra-humanas. Um deus que é um vício na cabeça do homem. Quando nos livramos dele, a sensação é a mesma de um viciado que se livrou do fumo ou do ópio ou de qualquer outra droga: alívio e liberdade. Alívio por não se precisar mais prestar contas de nossas vidas, de nossos atos, a essa divindade terrível que tudo vê e que está pronto a nos punir com a perdição eterna. Liberdade para poder enxergar a vida e a natureza com olhos de compreensão e de humildade diante de sua capacidade de nos surpreender. Liberdade, principalmente, para traçar um destino mais sensato para a humanidade, sem as armadilhas das superstições que nos levam a crer em sobrevivência de uma alma que não necessita de corpo físico e, portanto, da natureza, para existir. Quando o ser humano se sobrepõe à natureza, ele se condena ao desaparecimento.


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