quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

099 - O VÍCIO DE PENSAR EM DEUS

(Henry Woods)


Perdida entre as páginas de algum livro antigo de minha biblioteca, lembro claramente, está uma folha de revista, amarelecida pelo tempo, provavelmente de 1960, quando ainda era muito jovem, em que há uma citação de um autor cujo nome será demais recordar agora, mas sua máxima me acompanhou a vida toda e está clara em minha mente: “Se Deus não existisse, os homens já O haveriam de ter criado, à força de pensar Nele”. Assim mesmo, com todas as maiúsculas de respeito. Passados tantos anos, essa frase, que me soava enigmática, tem, agora, um sentido bastante interessante. A ideia de deus ou de uma divindade acompanha o homem há tanto tempo, que o cérebro humano já se acostumou a pensar na sua existência, imposta desde os primeiros vagidos da criança, talvez, mesmo, desde a concepção, transmitida geneticamente, de geração a geração, e durante toda a vida intrauterina. Há um vício, portanto. Um pensamento que parece grudado à mente dos humanos, ou da maioria dos humanos. Como o vício do fumo. O organismo se acostuma ao tabaco e, depois, abandonar esse vício torna-se extremamente penoso. A única diferença é que o vício do fumo é um vício adquirido, enquanto o vício de pensar numa divindade é imposto como um dogma absoluto na mente humana, trabalhado através da repetição constante, a começar, por exemplo, no cristianismo, com o sacramento do batismo e, depois, com a educação da criança, estendendo-se, num cerco que beira a lavagem cerebral, a toda a sua vida. Em qualquer circunstância, em todos os momentos, não há quem não repita frases feitas de conteúdo deísta, como um “deus me livre” ou “deus te ajude” ou “vá com deus”. São inúmeras as vezes, durante apenas um dia de nossas vidas, que ouvimos, e às vezes até citamos, aforismos ligados à divindade, aparentemente repetidos de forma inocente e alheia à nossa vontade. São expressões que, de forma inconsciente, reforçam a ideia de deus em nossa cabeça: à força de pensar em deus, acabamos criando a criatura que achamos que nos criou. Como um vício. Um vício que não nos permite contemplar de forma isenta o mundo que nos cerca. Um vício que oblitera a nossa mente para outras possibilidades, muito mais humanas, de nos relacionar com as forças naturais a que estamos submetidos como seres que nascem, vivem e morrem como todos os demais seres vivos. Creio que podemos denominar esse vício de o mais poderoso meme já inventado pela imaginação do ser humano, algo quase impossível de erradicar de nossas mentes. Mas, tenha certeza de uma coisa, ó ser humano deísta que me lê, se você conseguir se livrar desse meme, desse vício, você se tornará, em sua mente, um ser absolutamente livre. E essa sensação de liberdade, pode ter certeza, é uma das maiores conquistas que um ser humano pode alcançar em termos de filosofia, de visão de mundo, de viver intensamente a vida de forma ética e comprometida com a própria vida e tudo quanto a ela está ligado: a natureza e o mundo em que vivemos, o nosso próprio corpo, ou seja a vida única e possível que temos. Portanto, cuidar de tudo isso é a primazia ética da liberdade de não ter que pensar em deus.



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