sábado, 18 de junho de 2022

154 - CABEÇA DE DINOSSAURO

 

 

(Britto Velho)

A idade média ainda não acabou. Embora o avanço tecnológico dos últimos séculos possa ser considerado impressionante, há línguas de medievalismo lambendo o pensamento humano, prendendo-o a estruturas arcaicas de superstições que contaminaram e continuam contaminando os usos, os costumes e as atitudes humanas. A tecnologia fantástica de nosso tempo, que permite que milhões de pessoas se comuniquem através de minúsculos telefones móveis com qualquer outra pessoa sobre o planeta, não se distribui igualitariamente a todos. Se a rede de telefonia se multiplica, outros inventos muito mais importantes, como aparelhos sofisticados de diagnóstico médico, ainda permanecem fora do alcance dos simples mortais e a anos luz de distância dos mais miseráveis. E a mesma tecnologia que populariza a telefonia não impede que milhões de desempregados e famintos ultrapassem as fronteiras da miserabilidade e se tornem cidadãos dignos. E mesmo os mais cultos, já uma minoria em meio ao imenso deserto de cérebros que pululam por todas as classes sociais, ainda conservam, cultuam e divulgam ideias arcaicas sobre a natureza ou sobre a origem do universo. Não compreendem, ou não querem compreender, que o mundo, a natureza e tudo o que nos rodeia nada têm de sobrenatural e que não somos governados por forças ocultas nem por espíritos ou deuses e deusas. O mundo dos seres humanos ainda tem almas, espíritos, crenças absurdas, assombrações medievais a decidir destinos e a intervir na rotina de seus trabalhos diários cheios de máquinas e tecnologias avançadas. Ainda se reúnem os seres humanos em multidões impressionantes para cultuar a imagem de uma santa católica ou uma pedra negra dentro de um santuário muçulmano. Se não dançam para chover, confiam na palavra de magos e de videntes de todas as categorias; buscam a interpretação da vida na leitura de estrelas distantes; aceitam como divina a palavra de qualquer falastrão bem articulado que se vista de padre, pastor, rabino ou qualquer outra coisa; erguem templos inúteis aos deuses, agora unificados em um só, para enriquecer associações criadas para o culto ao nada e para o enriquecimento de seus fundadores e de seus representantes; acreditam em mezinhas para a cura de doenças como câncer e aids/cida; arrostam o perigo facilmente detectável para construir suas casas em locais de risco, como se uma divindade suprema tivesse o dom de impedir as catástrofes iminentes e irreversíveis; aceitam as guerras e os assassinatos como se a vida humana não fosse o único dom que o ser humano tem; destroem o mundo com a sujeira dos gases de suas fábricas e de suas máquinas poluentes que se multiplicam como praga de gafanhotos, como se não soubessem que a Terra tem os seus limites e que esses limites não podem ser ultrapassados sob pena de colocar em risco a sua própria sobrevivência; comem os frutos podres da terra, esquecidos de que a ciência há muito descobriu a existência de vermes que prejudicam o organismo humano; enfim, desafiam o próprio conhecimento até agora acumulado pela humanidade e permitem que a vida se povoe de superstições e de pensamentos arcaicos, de há muito abandonados por uma minoria de cérebros privilegiados que sabem interpretar corretamente, o mais próximo possível da realidade, os sinais que a natureza, e não uma divindade, nos fornece para melhorar as nossas condições de vida, mas não conseguem, esses cérebros privilegiados, convencer a imensa maioria a abandonar as superstições, as crenças medievais, os cultos inúteis, os costumes absurdos, as ideias criacionistas e os demônios que continuam povoando a imaginação do homem. São resquícios medievais em que tropeçamos a todo instante, quando caminhamos por qualquer cidade deste planeta, porque o ser humano ainda tem a cabeça de dinossauro, apesar de todo o aparato tecnológico despejado sobre ele nos últimos quinhentos anos ou, mais precisamente, no último século. Se já pisou o solo da Lua, o ser humano ainda não alçou o voo da superação das crenças, atitudes, usos e costumes do passado deísta que insiste em permanecer como uma pedra irremovível na evolução do pensamento humano.

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