domingo, 3 de outubro de 2021

073 - O MAL E O BEM COMO CATEGORIAS ABSURDAS DA METAFÍSICA

 

(Marianne von Werefkin;1860–1938)

A vida é muito simples, quando não há metafísica nenhuma para complicá-la. Não se necessita de teogonias complexas para explicar por que nascemos, vivemos e morremos. A natureza já é, em si mesma, o milagre supremo: não há que se buscar em deuses obtusos a explicação de outros pretensos milagres. Aliás, quando usei a palavra milagre para me referir à natureza, cometi propositadamente um equívoco de linguagem, por ausência de uma palavra que melhor reflita o que eu penso. A natureza não é milagrosa, nem é em si mesma um milagre, porque simplesmente não há adjetivos para ela. A natureza é um substantivo que se basta por si mesmo. Qualquer penduricalho que se lhe aponha servirá apenas para obscurecer o pensamento. Portanto, vida e natureza são o que são e nada mais. Tentar metaforizar ou mitificar tais palavras nos levará fatalmente à mistificação do raciocínio e à criação de categorias metafísicas que nada explicam e só complicam o conceito. O “cogito, ergo sum” do ser humano que se acha a criatura suprema da natureza está revestido de uma imensa arrogância. Não conhecemos ainda uma milésima parte do mundo que nos rodeia e talvez nem isso da fisiologia do pensamento humano. Não sabemos que tipo de sabedoria se esconde nos cérebros dos demais seres vivos que habitam nosso minúsculo planeta. Provavelmente o pensamento desses seres revele conexões existenciais e de percepção da natureza de forma completamente diferente das que executamos com nossas vãs filosofias. O racionalismo pode não ser privilégio dos humanos. Tampouco podemos enveredar pelo caminho da linguagem para nos distinguirmos dos outros seres vivos, porque também não dominamos o nosso próprio mecanismo de comunicação. Não sabemos muito bem, ainda, como surgiu nos humanos a linguagem que hoje utilizamos. Como, então, saber que tipos de linguagem e de pensamentos se escondem nos movimentos aparentemente desconexos de uma formiga a caminho do formigueiro? Também elas, as formigas, pensam e, por isso, existem, ou existem e, por isso, pensam? É o que ocorre com o ser humano, provavelmente: existe, por isso pensa. E pensa muito, muito menos do que sua capacidade cerebral lhe permite. Temos uma ferramenta – o cérebro – cuja complexidade mal vislumbramos e ainda há muito que se desenvolver em termos de capacidade cerebral, para que possamos alcançar níveis mais elevados de compreensão da natureza que estão perdidos ao longo de nossa história. O instinto humano perdeu muito de sua capacidade durante o processo de evolução, mas nosso cérebro, provavelmente, guarda segredos que nos permitirão ou recuperar alguns desses instintos que nos permitam voltar a um estado de maior contato com a natureza ou evoluir para um outro tipo de compreensão que não nos permita realizar as bobagens que realizamos na relação com o mundo em que vivemos. A metafísica desviou o caminho do ser humano do físico, do real, da relação clara de causa e efeito da natureza, para concepções arrogantes de domínio ou de entrega a forças extra-humanas, deístas, como se não nos importassem os acontecimentos da natureza, porque há um deus a nos proteger. Por isso, lutamos contra a natureza, em vez de tomá-la como nossa aliada. Agredimos o ambiente em que vivemos em nome dessa arrogância de pensamento, dessa pretensão de seres supostamente superiores, acima do bem e do mal, categorias essas que também inventamos para justificar nossas bobagens. Não há bem ou mal. Não há bondade ou maldade. Há apenas ações que, nós, seres humanos, podemos julgar segundo parâmetros momentâneos em boas ou más, dentro da mais absoluta relatividade possível, se é que há uma relatividade absoluta. Quando falamos em maldade ou bondade, estamos no terreno da maldita metafísica. Os que criaram o pecado, os que criaram os deuses, os que inventaram mil e uma artimanhas para nos prender nas redes da metafísica, cuidaram também de envolver a natureza em seus conceitos e categorizaram a maldade e bondade como entes que coabitam com o mundo existente, uma abstração que interfere em todas as ações da natureza. Isso é uma arrematada estupidez. A bondade ou a maldade não estão ali na esquina a nos esperar, para nos aquinhoar com suas qualidades devidamente catalogadas, quando, incautos, tivermos que abandonar o aconchego de nossas casas. Não há maldade no lobo que ataca a sua “vítima”, há apenas o instinto de sobrevivência. Não há maldade na onda gigante que engole ilhas e praias cheias de turistas e mata mais de cento e cinquenta mil pessoas. Há apenas o fenômeno natural de deslocamento de placas tetônicas suboceânicas e não a mão de algum demiurgo a desejar vingança por pecados que não existem e, por isso, não poderiam ser cometidos. O ser humano também conserva instintos animalescos de sobrevivência. E o adjetivo “animalesco”, aqui, não tem nenhum conteúdo pejorativo. Está empregado no seu sentido mais estrito, referente apenas a animal em oposição a ser humano, para melhor entendimento. Por causa desses instintos, não de todo apagados da memória, agregados à sua herança genética, acrescidos de condições complexas do meio, os humanos têm ações contrárias à natureza humana e, por isso, podem tornar-se ameaça a outro ser humano. A inteligência, aliada à força bruta, levou o ser primitivo a assassinar, quando ameaçado. E o gosto de sangue permaneceu nos meandros de nossa escala genética, aperfeiçoados por milhares e milhares de ações ameaçadoras entre famílias, entre tribos, entre conjuntos de tribos e, hoje, entre nações. A diferenciação física, naquilo que se costuma chamar erroneamente de “raça” deu mais um passo rumo à violência: não reconhecendo no outro a semelhança, acredita-se que ele seja uma ameaça. Os usos e os costumes, a que chamamos cultura, acrescentaram mais tempero à já complexa iguaria de barbáries com que nos banqueteamos ao longo da história. As concepções metafísicas e deístas acrescentaram ingredientes altamente explosivos. Por isso, hoje, as guerras sofisticadas com armas de destruição cada vez mais potentes, para matar em nome de crenças, de territórios, de noções abstratas de honra ou simplesmente porque colocamos no outro a maldade que nossa teogonia inventou e categorizou, esquecidos de que, nesse processo louco de destruição um do outro, estamos diante de um espelho que partimos cada vez que detonamos a casa do “inimigo”.

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