quarta-feira, 14 de julho de 2021

046 - RELAÇÃO DO SER HUMANO COM A MORTE


(Pietr Bruegel)



As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Mas, quando se trata da vida além da morte, essa crença extrapola toda e qualquer possibilidade de racionalismo, porque, mais do que uma crença, é um desejo, um desejo entranhado de tal forma nas estruturas mentais humanas, que é impossível deixar de desejá-lo, por mais cética que seja a pessoa. Quem não gostaria de reencontrar o ente querido? Essa a pergunta que não permite que nos tornemos racionalistas diante da morte. No entanto, por mais crença que tenhamos na vida além da morte, há uma espécie de supraconsciência de fundo, tênue o bastante para que dela não tenhamos noção, provinda do instinto animal de inconsciência da morte, que nos diz a verdade: que não há sobrevida. Por isso, sofremos. A morte traz para quem fica o mais doloroso sentimento que o ser humano experimenta: a noção de sua fragilidade e o sentimento de perda. Por isso, a morte de outro ser humano só nos incomoda quando temos com ele um tipo qualquer de relação, de conhecimento. Choramos a morte do parente e do amigo. Choramos a morte do ídolo ou da pessoa com quem estabelecemos algum tipo de empatia, mas não choramos a morte do desconhecido ou do inimigo. Mortes coletivas só têm impacto nas comunidades que a sofreram, mesmo entre aqueles que não conheciam os mortos, pela proximidade, mas não ocasionam maiores sentimentos entre populações distantes. A morte é individualizada. Porque, como morrem centenas de pessoas todos os dias, os humanos criaram algumas formas de autoproteção em relação a ela. E purgam-se os medos através do espetáculo, das cerimônias fúnebres, quando morrem pessoas de grande reputação na sociedade. Multidões que se arrastam em prantos atrás do caixão da celebridade reproduzem de forma inconsciente todos os temores ancestrais de nossos antepassados diante do desconhecido, desde o funeral do homem das cavernas, desde os faraós e suas pirâmides espetaculares, até o prosaico ato de cremar os corpos e espalhar suas cinzas ao vento. Carregar o corpo morto por ruas e avenidas: o ato simbólico de reverenciar, mais uma vez, o temor da morte. Prestar honras ao morto faz o ser humano encarar o terror da morte e aceitá-la como um fato da vida, pelo menos de forma a suportar a dor e sofrer menos, isto é, chorar ali, naquele momento, uma dor que se carrega para toda a vida. E a esperança do reencontro mitiga a saudade e torna mais suportável a vida. Ao aceitar esse tipo de raciocínio, o mundo se transforma no “vale de lágrimas”; viver torna-se sinônimo de sofrer e, portanto, apenas uma transição para um estado de felicidade, de nirvana, que só acontece com a morte. Num paradoxo dos mais complexos que a humanidade já criou, passa-se, então, a desejar a morte, como forma de redenção. O desejo da morte faz parte desse sistema niilista de reconhecer na vida a existência da morte. E torna o ser humano um ser especial entre todos os seres. Ao desejar aquilo que ele mais teme, a morte, a humanidade supera o terror e entra no terreno tenebroso da metafísica, que complica aquilo que é o mais simples da existência humana, a própria vida, criando teorias complexas e complexos sistemas de ultrapassar a dor da morte. E mergulha, assim, nas trevas da ignorância, usando, para isso, da sapiência que acumulada durante milhões de anos em seu cérebro. Esse, talvez, o maior paradoxo humano: usar a inteligência para justificar a estupidez. E essa inteligência metafísica, ao mesmo tempo em que constrói um monumento de raciocínio estúpido, gera maravilhas do conhecimento científico, por ter sido capaz de criar no ser humano a capacidade de levar o raciocínio a elucubrações magistrais que só se tornariam, talvez, possíveis muitos milhares de anos mais tarde do que efetivamente ocorreram, se não houvesse a metafísica. Somos, portanto, reféns de nossas armadilhas mentais, ao construir realidades e possibilidades científicas a partir de ideias absurdas e destituídas de qualquer lógica. Superamos nossa condição de animais, ao construirmos uma cadeia de absurdidades que nos tornassem suportável a vida. Enredamo-nos numa teia metafísica de sistemas ilógicos, para construir nossa capacidade de raciocínio e não sabemos, agora, pelo menos por enquanto, como sair desse urdimento, para criar um novo ser humano verdadeiramente livre, dono de si mesmo e não contaminado por todo esse lixo niilista e pessimista de aceitação de ideias absurdas como o deísmo e a vida após a morte. Somente outros milhares de anos para que essas ideias sejam suplantadas e uma nova humanidade surja, lentamente, dos meandros da história, numa evolução de mente e corpo, capaz de projetá-la rumo às estrelas. O pessimismo, portanto, não está no ateísmo, na não aceitação de doutrinas ridículas, na vida vista sob a óptica do materialismo, mas, ao contrário, do lado dos metafísicos, dos que desejam a permanência dos seres humanos na obscura via do inferno de Dante, na preservação de ideias e conceitos que contrariam toda a lógica da natureza. E superar esse tipo de pessimismo travestido de esperança inútil não é tarefa para poucos ou para uma geração, é algo que irá nascendo lentamente, a partir da superação da ignorância, da melhoria genética da raça humana, com ou sem intervenção do próprio homem, ao encontrar os rumos de uma ciência verdadeiramente ética e confiável, que tenha olhos de ver não apenas o espaço mas o tempo, a linha tênue mas indelével do tempo, que traz espantos e desvios, mas segue o seu caminho para um futuro certo de superação de muitos dos obstáculos que tornam a vida na Terra um falso “vale de lágrimas”, na visão pessimista dos deístas de plantão.


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