sexta-feira, 11 de junho de 2021

015 - A SANTA INQUISIÇÃO

 

(Um auto de fé - autoria desconhecida)


Talvez o fato mais traumático da história da igreja romana esteja na instituição da inquisição, no século XIV. Numa sociedade europeia de características ainda feudais, mas em processo constante de transformação, a superposição da fé cristã às religiões pragmáticas de centenas de povoações camponesas iletradas deve ter tido por consequência a mistura de ritos. Não se pode negar que, a pretexto de explicar o inexplicável – a criação do mundo por um único deus, a existência de um paraíso terrestre do qual o primeiro homem é expulso, enfim, toda uma teogonia absurda – a igreja teve de sofisticar ao infinito a sua teologia, o que a tornou uma das mais complexas teologias da história da humanidade, baseada em mil sofismas desde os filósofos gregos até os exegetas mais modernos, como Tomás de Aquino e Agostinho, canonizados santos por suas teorias e por darem à fé católica um arremedo filosófico. Ora, todo esse arcabouço teórico sofisticado devia ser traduzido por padres e frades não tão cultos, para dizer o mínimo, a populações que, além de iletradas e ignorantes, muitas vezes, tinham a sua própria teogonia, quase sempre ligada a deuses pagãos de origem, por exemplo, celta, que praticavam cultos ligados aos ciclos da lua e do sol, das estações do ano, do momento certo para plantar e colher etc. A imposição do cristianismo não apaga, com certeza, os cultos antigos que, pouco a pouco, devem começar a ressurgir, aqui e ali, para desespero da então já poderosa igreja católica, com seus interesses agrários e de dominação dos incontáveis reinos e feudos que caracterizavam a Europa medieval. Assim, era preciso erradicar qualquer concorrência. Eliminar todo e qualquer culto heresiarca. E a melhor forma de eliminar a heresia é eliminar os heréticos. Assim deve ter surgido a chamada santa inquisição. Que perseguiu e matou judeus e nobres, para tomar suas terras. Que perseguiu e matou camponeses, para impor a lei da obediência e do silêncio. Que perseguiu e matou intelectuais, para evitar ameaças à sua lei. Que não poupou, portanto, nenhuma classe social. Só não se devorou a si mesma, porque não teve tempo, terminou antes.


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