quinta-feira, 29 de julho de 2021

051 - O MUNDO DIVIDIDO ENTRE O BEM O E O MAL

(Bernard Buffet (1928-1999): Dante)


Não acredito na existência do mal. Tampouco do bem. São categorias criadas pela mente adormecida pelas crenças deístas. Se não houver o mal, não há necessidade de um deus para opor-se-lhe. O diabo precisa de deus e deus precisa do diabo. São faces da mesma moeda. Criações necessárias não ao equilíbrio de uma pretensa luta entre eles, mas necessárias para manter a mente humana ocupada em servir a um e a exorcizar o outro, conforme o lado da balança em que se coloque a imbecilidade humana. Na natureza, essas duas categorias não existem. As forças que regem a natureza apenas atuam. Não julgam, não se opõem entre o bem e o mal. A enchente do rio não tem a pretensão disso ou daquilo. Ela apenas ocorre, porque é de sua natureza ocorrer. O vulcão explode sem intenção alguma, a não ser porque existe para explodir como consequência de forças poderosas no interior da terra, que devem equilibrar-se por alguma lei que não conhecemos muito bem. E assim, com todos os fenômenos naturais: não há bondade ou maldade, apenas cumprem leis que os seres humanos vão pouco a pouco descobrindo. Também no reino animal, o leão não mata o cervo porque lhe quer mal, mas o cervo é, para o leão, apenas a comida que o mantém vivo. Há uma lei natural sob cada acontecimento na natureza. A humanidade, dentro desse mundo de absoluta neutralidade, por um capricho da própria natureza, ganhou a capacidade de interpretá-la. E, ao fazê-lo, sempre o fez mal. Ao ganhar consciência e, por extensão, inteligência, não soube primitivamente interpretar os acontecimentos como tais. Precisou dar-lhes conteúdos que eles não têm, ao não entender as causas de suas ocorrências. Assim, criou, sem querer, a metafísica. O mundo além do físico. E povoou esse mundo de seres imaginários. Quando nos referimos aos deuses do olimpo grego, tenho a impressão de que muita gente imagina que verdadeiramente esses seres conviviam diariamente com os humanos e que se podia encontrar com eles nas ruas e estradas, ou nos templos, aonde acorriam os filósofos, os governantes e até mesmo o homem comum, para falar com eles e ouvi-los. As desavenças e lutas entre eles são relatadas com tanta “humanidade”, que parecem velhos conhecidos que viveram, amaram, sonharam e um dia morreram, quando a cultura grega deixou de ser o que era. Afinal aí estão os relatos dos poetas, dos filósofos e dos dramaturgos e as estátuas e pinturas para provar sua existência. E esses seres inventados podiam trazer o bem, quando a chuva apenas contribuía para matar a sede e fazer crescer as plantas, ou trazer o mal, quando a chuva inundava pastagens e plantações e destruía e matava humanos e animais. O mundo categorizava-se, dividia-se, para poder ser compreendido ou controlado. Compreender e controlar as forças da natureza dependia, então, dos seres imaginários, dos deuses, enfim dos donos de todas essas forças. E como eles eram irascíveis, precisavam ser adulados com palavras ou sacrifícios. Uns, no entanto, atendiam. Outros, não. E a noção de bem e mal se instalou na mente humana. Não para sempre. Até hoje. Não conseguimos, ainda, viver sem essa dualidade. Porque, afinal, praticamente tudo na natureza que nos rodeia e que enxergamos tem dois componentes, a partir do próprio ser humano: se tem um só cérebro, há dois hemisférios; se há um só corpo, há dois braços, duas pernas etc. Pensamos dualmente. Não é à toa que o computador tem uma linguagem dual. Sempre buscamos o outro, para nos completar. Na vida animal, incluindo o ser humano, o casal constitui a situação dita normal. O sexo masculino e o sexo feminino. Essa forma dualista de pensar ocasiona, é claro, inúmeros problemas: rejeitamos ou temos a tendência de rejeitar tudo o que contraria essa “normalidade”. Daí ao preconceito, é um pulo. O diferente representa o mal ou a sua manifestação e, por isso, deve ser destruído: o índio, que era diferente para o europeu; o negro, que é diferente para o padrão branco que se diz prevalente; o homossexual, que contraria o modelo... Enfim, categorizar o mundo em mal e bem está na fonte de muitas incompreensões, de muitas guerras, de muitos genocídios. O preconceito, fruto do estranhamento, somente será totalmente superado, quando o ser humano deixar de dividir o mundo, mesmo que inconscientemente, nas categorias de bem e mal.


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