sexta-feira, 23 de julho de 2021

049 - VIOLÊNCIA E SOCIEDADE

(Fernando Botero - Abu-Ghraib)

O tecido social forma-se a partir da harmonia entre as diversas camadas que o compõem, formando uma malha harmônica de interdependência e de inter-relações. Há espaço para determinadas degenerações, como a brutalidade, o estupro, o assassínio, porque esses atos são parte, ainda, da natureza animal do ser humano, de sua carga genética através dos tempos. E muito tempo correrá ainda para que esse tipo de herança se esvaia e se torne uma lembrança dos tempos tenebrosos em que ainda vivemos. Mas, mesmo nesses tempos, há um certo nível de crimes que a sociedade assimila, o que poderíamos chamar de uma certa “normalidade”. No entanto, quando esse nível atinge números assustadores de violência, é que o tecido social se acha corrompido, não por um mal, mas por injunções de crescimento populacional, miséria, falta de perspectivas de vida, falta de princípios éticos que refreiem os instintos de violência. O século vinte foi o século em que mais se matou, na história da humanidade. Não apenas nas duas grandes guerras que o marcam para sempre, mas também em milhares de outros pequenos conflitos regionalizados, com um índice absurdo de massacres, genocídios, assassinatos, perseguições. E também foi o século em que a humanidade atingiu picos de crescimento populacional. O mundo entrou em processo de desequilíbrio, porque o ser humano não está preparado para conviver com o outro em tão grande quantidade. É como se tivéssemos num pequeno jardim um efervescente surto de plantas e, de repente, começassem a surgir de todos os pontos ervas daninhas a atacar as demais plantas e destruí-las. Essa explosão de ervas daninhas é resultado, ao mesmo tempo, do excesso e da necessidade de ganhar território que dê sobrevivência às ervas “naturais” e da necessidade de destruir as que impedem o seu desenvolvimento. É como se as ervas daninhas fossem o câncer usado para destruir as outras, mas que na verdade destrói quem o cria. De uma forma “natural”, a humanidade cria “monstros” (genocidas, assassinos etc.), para se proteger do desmesurado crescimento, mas quando esses “monstros”, fruto do descontrole populacional, também começam a crescer descontroladamente, voltando-se contra o tecido que o criou, gerando mais violência, é que esse tecido está irremediavelmente doente. As barreiras éticas foram rompidas, porque eram frágeis, baseadas nos princípios deístas de sobrevivência após a morte e no próprio culto à morte, incentivado por seitas niilistas como o cristianismo, o islamismo, o judaísmo e tantas outras. O direito à vida deixa de ser fundamental, e a morte torna-se elemento de convivência tão próxima e diária, que se torna banal. Um cadáver na rua não mais assusta. Uma bomba que mata vinte ou cem também não. E assim, banalizada, a violência cresce em círculos concêntricos, tornando a vida cada vez mais perigosa de ser vivida. Os facínoras perdem a noção dos limites e creem-se dotados do poder de vida e morte sobre os outros. A sociedade permissiva de quando os crimes estavam sob controle, como acontecimento “natural”, dentro dos limites do tolerável, começa, então, a buscar reações que podem levar a mais violência, como a pena de morte, a perseguição implacável a supostos inimigos, a decretação de leis draconianas. Uma sociedade que se respeita não pode, nunca, ser tolerante com marginais, com aqueles que buscam a destruição de seu equilíbrio. A ideia cristã do perdão é um de seus grandes equívocos. Os “monstros” têm de ser afastados da convivência social e, dependendo de seu crime, para sempre, sem necessidade da pena de morte, que é antinatural e contra todos os princípios de valorização da vida. Mas, se um indivíduo comete um crime hediondo, não pode haver leis que o libertem após uns poucos anos de prisão, porque um crime contra a vida não pode ser perdoado, para ser repetido. Essa tolerância também é responsável pelo crescimento da violência, tanto quanto a glamourização de certos aspectos antissociais, como o uso de drogas proibidas, traficadas sob a complacência de famílias que protegem o seu membro usuário, esquecendo-se de que atrás de cada porção da droga está o crime organizado, violento e antissocial. A armadilha da proibição de drogas alucinógenas ajudou a criar a violência que a proibição pretendia combater. Assim, não há saída para esse tipo de ajuda à violência: quanto mais proíbe, mais se usa e quanto mais se usa, mais se alimenta o crime, num círculo vicioso difícil de ser rompido por uma sociedade preconceituosa e organizada em torno de ideias de pecado, punição, perdão e outros princípios deletérios e destruidores de sua capacidade de julgar os fatos de forma racional. O crime, as guerras e as lutas genocidas levarão a humanidade a um esgotamento perigoso, pois nesse caso não há distinção de espécies e o ser humano pode estar destruindo seus melhores genes, o que levaria a um retardamento do processo evolutivo rumo a uma seleção genética natural, que conduzisse a raça humana a uma situação de melhor equilíbrio e às grandes possibilidades de existência que a esperam no futuro. Para retornar ao equilíbrio, à “normalidade”, há que se estabelecer políticas públicas e sérias de controle da natalidade, de melhoria de condições de vida das populações carentes até à extinção total da miséria, dando possibilidade de sobrevivência a todo ser que nasça não importa onde. O esgarçamento das fronteiras nacionais deve ser um elemento precioso na luta pela sobrevivência de uma nova forma de relacionamento entre os povos. Se, por um lado, haverá o fortalecimento de culturas regionais, essas mesmas culturas serão responsáveis pela abertura das fronteiras, pois não se sentirão ameaçadas em sua individualidade pela convivência com as demais culturas do planeta, ao se estabelecer uma relação de respeito mútuo. Embora a noção de país, de pátria, permaneça, estará sobrepujada pela ideia de defesa do globo e das condições de sobrevivência na terra como um celeiro para a humanidade do futuro. Assim, prevalecerá a noção de ser humano como um ser terráqueo, intermediário da noção do humano como ser interplanetário, responsável por espalhar a vida ao universo possível de ser conquistado.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

187 - PALAVRA FINAL: O ALÉM DO HOMEM

  (Vincent van Gogh) Tenho plena consciência de que tudo quanto eu escrevi até agora constitui um rio caudaloso, uma pororoca, sobre a qual ...