sábado, 10 de julho de 2021

043 - A VIDA É PROCESSO

(Escultura de Giambologna: Rape of a Sabine)



Quando se começa a pensar no ser humano, a primeira coisa que nos ocorre é dizer “o ser humano é...” seguido de predicativo (ou predicado), já que o verbo assume a função de mera ligação entre o ser e o predicado que se atribui a ele. E começa aí a nossa ilusão niilista e metafísica do ser humano. Ele não é um ser mais predicado. Ele apenas é. Ou seja, o ser humano existe e nada mais. Porque não há uma entidade chamada ser humano. Como não há uma entidade chamada humanidade. Há seres humanos. Diversos. Complexos. Unos. E, sobretudo, existentes na sua individualidade genética. O ser humano, assim compreendido, apenas é, apenas vive e sobrevive e está condicionado à sua herança. Quando falo, portanto, ser humano, por falta de outra expressão, não estou falando numa entidade metafísica, composta de complexas elucubrações ideológicas ou ideais, mas no ser que habita cada corpo físico e, como corpo físico, tem lugar num mundo em mutação há bilhões de anos e que ainda não se construiu e talvez não se construa nunca. Quando pensamos nesse ser, vemo-lo na história, em evolução sucessiva até o estágio atual, mas nos perdemos ao tentar olhar para a sua verdadeira identidade, pois o olho com o qual olhamos é um olho limitado e limitador da realidade. Pensamos que estamos no ponto mais alto de uma absurda criação, quando somos apenas o início de um processo evolutivo que nossa capacidade ainda extremamente limitada pelo período histórico de apenas algumas centenas de milhares de anos de existência do ser humano na terra nos impõe. Estamos, sim, apenas no início de um processo evolutivo. Não nos damos conta das mudanças, das alterações genéticas, porque somos parte do processo. Se tivéssemos um olho que olhasse o tempo e não o espaço, como estamos condicionados a olhar, talvez ficássemos cegos pela beleza absoluta do eclodir da vida e da sua capacidade de modificação. Veríamos, sim, além dos séculos, um humano além ser humano, que Nietzsche vislumbrou e não teve tempo de descrever. Para esse ser, todo o tempo vivido até agora seria apenas uma poeira, um tempo niilista para esquecer ou para ser colocado no museu da estupidez humana. Um ser humano novo, que ainda assim seria apenas mais um degrau da experimentação biológica, já construiria uma nova ordem, uma nova ética, superada a ideia de credor e devedor, um ser humano que não deve nada a ninguém, nem a deuses nem a si mesmo, livre e pronto para conquistar novos mundos e espalhar a vida pelo universo. A vida, sim, pode ser definida com o predicado aposto ao verbo ser: a vida é processo. O ser humano apenas é, dentro desse processo. Não há possibilidade de tal criatura ter sido criada, porque o ser humano não é criatura, mas decorrência de um processo de vida. Enquanto houver vida, haverá humanos? Será que, mesmo quando o universo se expandir ao seu limite e houver todo o processo de retração para um buraco negro onde se fundirá e se transformará na não-matéria, no átomo primevo, que explodirá em seguida para uma nova expansão, o que já deve ter ocorrido por vezes incontáveis, muito além de nossa capacidade de percepção, a vida se restabelecerá e surgirá, como decorrente desse processo, novamente esse ser humano, esse que é, agora, parte da engrenagem de um universo em contínua expansão e retração? Não sabemos e não saberemos nunca. Só o que sabemos é que a vida humana, a nossa vida, é o bem mais precioso, por ser única e por ser aquilo que dá sentido a tudo quanto somos, sem sofrimento, sem culpa, sem deuses a quem prestar qualquer tipo de obediência ou de quem esperar qualquer tipo de castigo.


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